Distanciamento institucional
Numa palavra, e pelos piores motivos, poderíamos resumir o último debate do Estado da Nação numa palavra: arrepiante. Poupando o leitor à enumeração de inexistências - a oposição - e preferindo escapar aos desaires que emanam ultimamente do executivo, escapa-me como é que o Partido Socialista é governo há seis anos, consolida poder há outros tantos e triunfa eleitoralmente sempre que o país vai a votos, mas se encontra, aos ouvidos de quem se dá ao trabalho de escutar, sem nada para dizer.
Candidato presidencial? Não teve, nem tem. Potenciais ministros para a tão badalada remodelação? Não teve, nem terá. Futuros líderes à altura da ginástica e peso de António Costa? Não teve, nem parece ter. Tirando uma voraz instalação por tudo o que é aparelho de Estado, cargos e empregos, o que anda a fazer o PS? Se o projeto é receber o máximo possível e fazer o mínimo exigível ‒ e esse projeto, atenção, mantém carinho popular ‒, não há o mínimo de cuidado na pintura da camuflagem?
É rebobinar o debate parlamentar da transata semana: chavões europeus, fábulas tecnológicas e retórica em forma de historiografia.
Por partes, para descomplicar.
O primeiro-ministro importou a lengalenga da União Europeia acerca da transição digital (num país em que as famílias mais pobres esperaram eternidades pelos computadores para a telescola), da transição energética (num país que paga a eletricidade mais cara da Europa e a gasolina mais cara de sempre) e do 5G (sendo nós, além da Lituânia, os únicos à espera da conclusão do leilão do dito). Adesão à realidade? Zero. Contacto com o português comum? Nenhum.
Os grupos parlamentares, por sua vez, não destoaram do desfoque. O PS e o PSD ensaiaram um profícuo debate sobre quem é mais pai do Serviço Nacional de Saúde do que o outro; questão fundamentalíssima para os destinos do país. Sendo o SNS filho de um governo de 1978, em coligação PS-CDS, que durou meia dúzia de meses, há perspetivas para todos os gostos. É de António Arnaut, é, que o desenhou. É do PSD, é, que governou logo a seguir e por mais três governos. E é do CDS, é, que não só apresentou uma proposta sua sobre o mesmo, como integrava o executivo em funções. Aliás, para as almas de então mais capazes de memória e menos contaminadas pelas respetivas conveniências, a pasta da Saúde, nesse governo, havia sido inicialmente oferecida aos democratas-cristãos. Mas que importa isso ao futuro de Portugal, no sagrado ano de 2021? Nada.
Ana Catarina Mendes protagonizou o momento desimportante do plenário quando decidiu desenterrar "os 600 milhões que os senhores queriam cortar na Segurança Social"; malfadada intenção de Maria Luís Albuquerque, vice-presidente do Partido Social Democrata no consulado de Passos Coelho. Alguém poderia fazer obséquio de informar a líder parlamentar do PS que Maria Luís não é ministra há seis anos e deputada há três. Mas que importa igualmente isso à vida do país? Nadinha.
Portugal enfrenta um dos maiores desafios da sua encarnação democrática, contra uma pandemia, um sistema partidário em convulsão, uma arena internacional em transformação e um batalhão de fundos comunitários à porta. No Estado da Nação, todavia, discutiu-se a história do regime em banda desenhada, o resgate da troika, a governação de José Sócrates e a vacinação de infantes ainda por aprovar pela DGS.
Era suposto alguém ter visto?
Colunista