Discutir a saúde

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Antes da criação do SNS, os portugueses já tinham sentido uma enorme mudança com a criação do chamado Serviço Médico à Periferia (SMP), quando em 1975 centenas de jovens médicos que aguardavam nos hospitais a entrada nas especialidades, já com dois anos de prática clínica, foram em grupos organizados prestar assistência a populações nos mais distantes pontos do continente e ilhas. Tinha essa assistência a qualidade que hoje exigiríamos? Claro que não, mas foi um começo, uma mudança de paradigma, uma conquista fantástica. Com a criação do SNS, e a sua inicial implementação passou-se o mesmo, era um novo começo, tudo parecia um grande avanço. Seria hoje aceitável que a assistência médica às populações fosse garantida por jovens médicos inexperientes e sem a especialidade de Médicos de Família? Claro que não, mas isso não retira ao então SMP, ter sido um passo em frente. À medida que foi evoluindo, a exigência de qualidade do SNS foi naturalmente aumentando e ainda bem.

Hoje nos Centros de Saúde exigem-se médicos especialistas, nos hospitais exigem-se novos modelos organizacionais, e para doenças mais graves, equipas multidisciplinares dedicadas com provada experiência. O SNS de há quatro décadas tinha praticamente apenas a exigência do acesso, a qualidade era apenas medida, por todos poderem ter uma consulta, um tratamento ou uma cirurgia. Ao longo dos anos a qualidade do SNS foi aumentando sempre, mas ao mesmo tempo a procura e as exigências foram crescendo. Hoje o que se faz no nosso SNS está em muitas áreas ao nível do que melhor se pratica no Mundo e isso é raramente valorizado, prefere-se sempre acentuar e publicitar as deficiências que crescem proporcionais às nossas legítimas exigências. Ao longo das quase cinco décadas do SNS, este não se soube adaptar a vários tipos de ameaças, a principal foi sem dúvida, no que se refere aos recursos humanos o aparecimento e o crescimento desregulado da oferta privada. Mas os hospitais privados não têm modelos organizacionais clínicos que lhes permitam dar resposta capaz à grande maioria das doenças muito graves. Desde logo porque não funcionam com equipas baseadas em hierarquias de competência, praticam uma medicina individualista em que cada médico é dono dos seus doentes. No SNS funcionam equipas onde as decisões são tomadas por colectivos baseados numa hierarquia de competências, fora de decisões individuais forçosamente insuficientes para uma actuação correta. Os médicos não são donos dos doentes, as propostas terapêuticas têm de ser avalisadas por um colectivo, no confronto científico saudável e baseado em evidências clínicas comprovadas. Fui director muitos anos de um Centro de Referência para tratamento das doenças graves do Fígado das Vias Biliares e do Pâncreas (HBP). Todas as decisões para definição de uma estratégia terapêutica global, eram (e continuam a ser!) tomadas em reuniões multidisciplinares presenciais, e mesmo as minhas soluções tinham de ter a concordância da equipa. Claro que há muitas doenças que não precisam de tão sofisticados métodos para que se possam tomar decisões corretas, e são sobretudo essas que alimentam listas de espera para tratamento, sobretudo cirúrgico. Muitas das grandes criticas que diariamente se fazem ao SNS, têm a ver com a resposta deficiente nas urgências e na falta de Médicos de Família. São críticas legítimas, embora todos saibam que para grandes traumas e outras doenças muito graves, apenas o SNS pode dar uma resposta eficaz. Discutir a problemática da saúde em Portugal exige uma reflexão global. O SNS, tal como foi imaginado há 50 anos está ultrapassado. Foi criado numa altura em que não havia uma oferta privada, que foi crescendo e atingiu provavelmente uma dimensão exagerada. Mas ela existe e tem de ser aproveitada em benefício da nossa capacidade de resposta. Nessa reflexão têm de estar aqueles que apesar de poder ter opiniões diferentes sobre como deve ser actualizado o SNS, têm no entanto como finalidade garantir a equidade e a qualidade da oferta de saúde em Portugal. Não se pode discutir a saúde em Portugal numa redutora lógica do público contra o privado. Tal como na mesma redutora lógica da gestão pública contra a gestão privada, as badaladas PPP. A sigla SNS tem forçosamente de ser lida actualmente como sistema nacional de saúde. Em que o serviço público seja sempre o pilar fundamental, mas em que a oferta privada possa ter um papel relevante.

Deste equilíbrio, acentuando mais uma das vertentes do que outra, chegar-se-á a uma conclusão, a que melhor sirva os portugueses. Mas que fique claro, o actual SNS, mesmo com os actuais constrangimentos e dificuldades é de enorme qualidade. Para certas doenças e grandes traumatismos, não têm os portugueses resposta à altura fora dele. Só no SNS a medicina é praticada por equipas com uma forte hierarquia de competências, estruturada em carreiras médicas que precisam de ser urgentemente revistas e prestigiadas. São todos estes aspectos que têm de ser analisados, sem contaminação de exageros ideológicos ou partidários.

Cirurgião.

Escreve com a antiga ortografia

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