Desta vez a culpa não é dos ‘smartphones’

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Há uns dias, num artigo sobre a violência no coração de África, a BBC escrevia: “é muito provável que dentro do seu smartphone haja uma pequena quantidade de um metal que começou a sua jornada enterrado no subsolo do Leste da República Democrática do Congo, onde atualmente está a ser travada uma guerra brutal”. E depois explicava como esse pedacinho de tântalo, “com menos peso do que metade de uma ervilha”, é essencial para o bom funcionamento de praticamente todos os dispositivos eletrónicos, e que metade da produção mundial vem do antigo Zaire, onde uma milícia identificada com M23 controla a extração, jogando com as rivalidades étnicas e beneficiando da cumplicidade do Ruanda, cuja exportação de coltan (que é um minério do qual se retira tântalo e também nióbio) tem sido muito acima da produção nacional.

Cito a BBC não para tentar mexer com a consciência de quem está a ler, mas sim para elogiar essa grande instituição do jornalismo britânico por ter conseguido usar imaginativamente os smartphones para dar a conhecer uma outra tragédia em África, neste caso no Sudão, sobretudo num recanto do país com o nome de Darfur onde se morre aos milhares como nos Kivus, o Leste da República Democrática do Congo.

Fez chegar a habitantes de El-Fasher três smartphones. Na impossibilidade de jornalistas entrarem na cidade cercada, foi possível assim recolher testemunhos do último bastião das Forças Armadas do Sudão (SAF, de Abdel Fattah al-Burhan) no Darfur, assolado pelos milicianos das Forças de Apoio Rápido (RSF, de Mohamed Hamdan Dagalo, mais conhecido como Hemedti), em tempos ao serviço do governo de Cartum, e que recrutaram sobretudo entre os Janjaweed, que há duas décadas lançavam o terror nas populações não arabizadas. As filmagens foram feitas entre agosto e novembro do ano passado, até que os que os usavam fugiram por a vida se ter tornado insuportável.

A atual guerra civil dura há dois anos. Combatem siglas e líderes que pouco dizem a quem vive longe, muito longe. Foram aliados antes, e até depois do derrube do regime de Omar Bashir, cujo historial de violência era enorme. As SAF, que retomaram o controlo da capital, tentam ser vistas como os moderados, e obter reconhecimento internacional. Do outro lado, o extremismo é notório, mas os civis sofrem com os bombardeamentos de uns e outros. São 150 mil mortos desde 2023, 13 milhões de deslocados, e a fome a ameaçar metade dos sudaneses.

O Sudão já foi o maior país africano. Em 2011, uma guerra no sul acabou quando o Sudão do Sul nasceu. No novo país também já houve guerra civil. No velho país, agora o terceiro maior do continente, o risco de mais fragmentação é grande, mas a história mostra que nem assim há garantias de paz. Qual será aqui a riqueza escondida? Petróleo?

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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