Descompensados

Publicado a
Atualizado a

Hoje, impera a cultura do imediato. Tudo tem de estar à distância de um clique, tudo é para ontem e, claro, no que concerne ao jornalismo, queremos é grandes manchetes com letras garrafais. Perde-se, então, na espuma dos dias, o fundamental – o que marca as pessoas e o seu futuro. Esta semana, entre o momento do Presidente da República e os protestos pró-palestina nas universidades americanas, deixámos escapar um dos temas mais caros ao país: a coesão territorial.

Não é, de facto, a pasta mais entusiasmante, nem tão pouco mediática. Não obstante, a coesão territorial é uma questão de direitos fundamentais. Trata-se de garantir que os cidadãos não são prejudicados no acesso a serviços públicos, habitação, transportes ou oportunidades de emprego, meramente por viverem numa determinada região.

Assim, mesmo que contra a vontade do Governo, é de saudar o fim das portagens nas ex-SCUT – curiosamente, proposto pelo PS e aprovado, conjuntamente, com o Chega. Este será, sem dúvida, um alívio nos custos das deslocações para quem passa e, sobretudo, para quem reside no interior do país. Todavia, não tão feliz foi o desfecho dos diplomas apresentados pela IL, Livre, BE e PAN que visavam alterar o sistema eleitoral para a Assembleia da República.

O debate não é recente, e a proposta apresentada para a introdução de um círculo de compensação nacional não é propriamente inovadora – já existe nas eleições para a Assembleia Legislativa dos Açores. No entanto, nem por isso se torna indispensável. Considerando a progressiva migração da população das zonas do interior para o litoral e a consequente transferência do número de mandatos, sem uma alteração ao sistema atual continuaremos a agravar a representatividade territorial e a reduzir a proporcionalidade entre votos e mandatos. Além disso, como podem os partidos, nomeadamente, PS e PSD, ignorar esta questão quando, nas últimas eleições, mais de 761 mil votos (cerca de 12% dos votos válidos) não serviram para eleger ninguém?

Não sendo ingénuos, a resposta é clara como a água. PS e PSD rejeitam estas propostas, sistematicamente, porque perderiam mandatos – ou como disse um deputado socialista, o sistema eleitoral “tem vindo a cumprir a sua missão”. Efetivamente, importa ressalvar que os partidos que propõem um círculo de compensação nacional obteriam mais mandatos do que com o sistema vigente. Contudo, ao contrário do que afirmou um deputado social-democrata, não seriam “ganhos de secretaria” para estes partidos. A alteração proposta seria, sim, a realização de um sistema que não só reflete de forma mais rigorosa a diversidade e pluralidade da vontade popular no panorama político nacional, como ainda contribui para uma melhor representatividade territorial.

Perdoem-me a maçada. Confesso-vos que também me sinto ralado de tanto que é necessário insistir em algo tão evidente, mas, como alertou o deputado do Livre Rui Tavares, "Estamos perante uma crise de representação no país por razões de origem geográfica. Estamos a falar de direitos cívicos. Estamos a falar de igualdade razoável." Para nós que queremos tudo imediatamente, resolver esta questão deveria ser para ontem.

Infelizmente, do mesmo modo que tivemos de esperar que o PS saísse do Governo para que defendesse o fim das portagens nas ex-SCUT, talvez também tenhamos de esperar que PS ou PSD sejam destronados para que apoiem esta alteração que urge ao sistema eleitoral. Talvez aí já não seja mais barato ir de avião de Lisboa a Bragança do que de carro, talvez aí um algarvio já não tenha de ir de urgência para um hospital em Lisboa, talvez aí já não sejamos descompensados.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt