Desburocratizar! Será mesmo a sério?
Portugal vive há décadas com a promessa da Reforma do Estado. Os discursos repetem-se, os diagnósticos estão feitos, mas a transformação efetiva tarda. O XXV Governo Constitucional apresenta agora uma proposta ambiciosa, prometendo simplificação, digitalização e responsabilização. Mas será esta a reforma que muda o paradigma ou apenas mais um episódio da longa narrativa reformista?
A proposta parece rejeitar a visão minimalista da “motosserra", que vê o Estado apenas como um custo a ser eliminado. Em vez de amputar o Estado Social, o Governo propõe torná-lo viável e eficiente. A aposta é num Estado mais ágil e justo, centrado no cidadão, onde o deferimento tácito substitui a desconfiança e o controlo a posteriori prevalece sobre os pareceres infindáveis.
A digitalização surge como o eixo central desta estratégia. Com interoperabilidade entre serviços, dados partilhados, plataformas focadas em eventos de vida e inteligência artificial aplicada à administração pública, pretende-se acabar com a duplicação de pedidos. O princípio “só uma vez” pode libertar o cidadão do labirinto burocrático e devolver-lhe tempo e confiança.
Mas não basta digitalizar processos antigos. É essencial construir uma arquitetura informacional sólida, coerente e transversal. Repositórios de dados únicos, interoperáveis tecnológica e semanticamente, são a base para que os sistemas se articulem eficazmente. Sem esta infraestrutura comum, a digitalização arrisca-se a ser cosmética, rápida mas desorganizada; moderna mas ineficaz.
Importa ainda garantir que esta arquitetura respeite princípios democráticos, transparência, proteção de dados e inclusão. A digitalização mal planeada pode acentuar as desigualdades e excluir os mais vulneráveis. O Governo demonstra alguma consciência destes riscos, ao propor medidas de inclusão digital e assistência multicanal. A tecnologia só será emancipadora se for acessível, humanizada e equitativa.
No combate à corrupção, o Governo reconhece que a opacidade e a lentidão alimentam os abusos éticos. Propõe simplificação, responsabilização e controlo a posteriori para reduzir vulnerabilidades. Ferramentas como o barómetro dos serviços públicos, avaliação de impacto de políticas e publicação de dados sobre decisões são positivas. No entanto, tudo dependerá da sua aplicação real, da autonomia das entidades fiscalizadoras e da capacidade de escrutínio cívico.
Quanto à participação da sociedade civil, os sinais são tímidos. Falta uma estratégia clara de administração aberta e de integração efetiva dos cidadãos na cocriação e monitorização das políticas públicas. Sem esse envolvimento direto, o poder do cidadão continuará a ser reativo, e não construtivo.
Na valorização dos funcionários públicos, o programa propõe atrair talento, premiar o mérito e reformar carreiras. São intenções meritórias, que exigem coragem para enfrentar resistências internas e mudar culturas enraizadas.
A proposta do Governo tem méritos ao romper com a paralisia e apontar para um Estado orientado por resultados, centrado no cidadão e na confiança institucional. Porém, sem uma verdadeira aposta na democracia participativa e sem um compromisso firme com a transparência e com uma arquitetura informacional bem desenhada, o plano poderá falhar.
O caminho traçado parece correto e para já merece o benefício da dúvida, mas o desafio é imenso. A reforma não é apenas técnica, é política, cultural e ética. Sem coragem para romper com vícios antigos e sem abertura à colaboração cívica, mesmo o melhor plano será letra morta.
Portugal não precisa de mais promessas, precisa de execução, integridade e visão. Só assim se poderá calar o populismo crescente que se alimenta da falência dos serviços públicos e do descrédito nas instituições.
Especialista em governação eletrónica