Democracia: talvez tudo deva mudar, para tudo ficar na mesma
A detenção de seis pessoas alegadamente envolvidas numa milícia de extrema-direita em Portugal constitui um sinal de alerta que nenhum democrata pode ignorar. Está escrito na parede, embora muitos teimem em não ver.
Durante muitos anos, demos como certa a ascensão da democracia em todo o mundo. A queda do Muro e o processo de globalização que acelerou nos anos que se seguiram criou um ambiente propício, à escala global, para a expansão da democracia representativa e da economia de mercado. As autocracias recuaram durante alguns anos e parecia que a História seguiria o seu curso de acordo com princípios hegelianos, com o espírito humano a evoluir no sentido da liberdade e a realização em todos os domínios. Nesses anos em que a principal ameaça à democracia parecia ser o facto de se ter tornado aborrecida, éramos felizes e não o sabíamos. Há mesmo quem argumente que a Civilização Ocidental atingiu o seu auge no final dos anos 90, antes de tudo o que se lhe seguiu: o 11 de Setembro e a explosão do fundamentalismo islâmico; a invasão do Iraque e as “guerras eternas” que se lhe seguiram; a crise financeira de 2007/2008 e a falência moral (e material) do capitalismo então vigente; a crise das dívidas soberanas na Zona Euro; o crescimento dos populismos e do extremismo; a guerra na Síria e a crise migratória; a ascensão da China e a resposta americana, com o regresso ao protecionismo; a pandemia de covid-19 e a invasão da Ucrânia pela Rússia. Em pano de fundo, o papel disruptivo das redes sociais, o enfraquecimento das instituições, como os órgãos de soberania, os partidos políticos, as igrejas e a comunicação social.
Como escreveu recentemente um autor norte-americano, vivemos num mundo onde existe uma crise de autoridade e os únicos especialistas a quem ainda reconhecemos alguma são os canalizadores, os carpinteiros e outros trabalhadores especializados, pela simples razão de que a digitalização e a Inteligência Artificial não lhes roubaram (ainda) o papel que sempre desempenharam. A elite intelectual que governou o mundo ocidental desde o Iluminismo está a ser posta em causa. E nada voltará a ser como antes.
O mais dramático de tudo isto é que, sem instituições, não há democracia que resista. A primeira característica do autoritarismo e do populismo é a erosão das instituições.
Como salvar a democracia representativa, neste contexto? A resposta não é fácil e, pior ainda, talvez a única forma de a salvar não seja aquilo que muitos democratas gostariam que fosse. Talvez tudo deva mudar, para que tudo possa ficar na mesma, na imortal frase do princípe de Falconeri.
Nota: O jornalismo livre e independente é essencial para que a democracia possa sobreviver. Isso é do interesse do próprio Estado democrático, mas nem sempre o legislador está consciente disto. Ser jornalista não é a mesma coisa que ser influenciador, comunicador ou comentador. Um jornalista tem por obrigação procurar chegar o mais próximo possível da Verdade, tanto quanto a condição humana e as circunstâncias o permitam. É um ideal a atingir, porque todos somos falíveis, mas ainda assim é algo a que devemos almejar. Quem não compreende isto não deveria ter carteira profissional, porque quando os jornalistas desistem deste ideal estão a condenar-se a si mesmos à morte e à irrelevância. Até porque se for para fazer comentários parciais, brincadeiras no TikTok, publicidade encapotada e outras coisas do género, haverá quem o faça muito melhor que nós.
Este tema é decisivo não só para o futuro da classe, mas também para a própria democracia como a conhecemos. E a Comissão da Carteira Profissional do Jornalista (CCPJ), que é o órgão que deve zelar pelo cumprimento da deontologia da profissão, tem uma grande responsabilidade em mãos.
A recente polémica no seio da CCPJ, com os representantes dos operadores privados a recusarem aceitar o nome da jornalista (e jurista) Luísa Meireles, proposta para a presidência pelos representantes dos jornalistas, constitui uma machadada na credibilidade deste órgão. O que choca não é o facto de votarem contra a escolha de Luísa Meireles, que é uma decisão legítima. O que choca são os argumentos apresentados: Meireles não poderá ser presidente da CCPJ, alegam, por ser também diretora da Lusa. Um argumento que não faz sentido, uma vez que não existe nenhuma incompatibilidade. A Lusa não compete diretamente com os outros meios em Portugal (pelo contrário, presta serviços a todos). O facto de a agência pertencer ao Estado também não deve ser argumento válido, tal como ninguém questionou a independência de anteriores presidentes da CCPJ que trabalhavam em grandes grupos privados. O pior disto é que a CCPJ fica paralisada numa altura em que se avolumam os desafios à profissão e em que, mais do que nunca, precisamos de uma regulação efetiva e credível.