Defesa mínima consentida
Comecemos assim. O Processo Marquês nunca foi a julgamento por duas razões - ambas decisões judiciais. A primeira decisão é de 2021 e considerou que nenhuma das acusações estava indiciada. Nenhuma delas tinha mérito para ser discutida em julgamento. Palavras do Tribunal Central de Instrução Criminal: acusações fantasiosas, especulativas e incongruentes. A segunda razão e uma decisão judicial da Relação de Lisboa que derrubou a pronúncia de 2021 (a chamada pronúncia Ivo Rosa), considerando-a como uma “alteração substancial de factos” e, portanto, ilegal e ilegítima. Em consequência, podemos afirmar, contra toda a campanha mediática em curso, que o Processo Marquês nunca foi a julgamento, não por causa de nenhuma “manobra dilatória”, mas em razão de duas decisões judiciais que puseram em causa a acusação inicial e a pronúncia feita mais tarde. Esta e a verdade dos factos. Compreendido?
Segundo ponto, igualmente importante para a compreensão do estado actual do processo. Ambas as decisões - a que considerou não-indiciadas as acusações (de 2021) e a que derrubou a pronúncia (de 2024) tornaram-se efectivas no momento exacto em que foram proferidas. Em consequência, neste momento não pesa sobre mim nenhuma acusação, nem pronúncia. Ao contrário do que dizem para aí, esta é a situação de facto. Compreendido?
Mas então o que sobra, perguntarão? Bom, sobra um acórdão de janeiro - o chamado acórdão do “lapso de escrita”. A história é assim: em 2024, um Tribunal da Relação de Lisboa (um tribunal ad hoc, composto, ilegalmente, por uma juíza entretanto transferida para a Relação do Porto e por uma juíza transferida para a Relação de Guimarães) proferiu um acórdão dando provimento parcial ao recurso do Ministério Público. As senhoras juízas fizeram assim: declararam existir um “lapso de escrita”, alteraram o crime e agravaram a moldura penal. Voilá: eis como um pequeno passe de prestidigitação judicial muda tudo - muda a acusação, muda o crime e muda a moldura penal.
Mas o que é, afinal, esse “lapso de escrita”? Bom, é o seguinte: os sete procuradores que assinaram a acusação enganaram-se no crime - enganaram- -se todos e enganaram-se todos ao mesmo tempo. Na parte mais delicada da acusação, na imputação do crime, os sete procuradores enganaram-se. Acontece que nos três anos de instrução nunca este lapso foi referido. Mais ainda: em 2018, os procuradores entregaram um documento ao tribunal pedindo para serem alterados alguns “lapsos de escrita”. O documento tem 15 páginas, tenho-o à minha frente, e não faz qualquer referência a este lapso. A verdade é que este lapso nunca existiu. Este lapso é pura ficção.
O que está agora em causa é este acórdão. A deriva penal em desenvolvimento parece querer substituir o velho princípio da “ampla defesa” pela ideia de uma “defesa mínima consentida”. Para alguns, recorrer do acórdão é usar “manobras dilatórias”; para outros, contestá-lo, é ter “medo de ir a julgamento”. Bem vistas as coisas, o mero exercício da defesa é visto como um pecado contra as instituições. Todo o recurso é suspeito.
Entretanto, o Conselho Superior da Magistratura criou um grupo de trabalho para “acompanhar de perto” o Processo Marquês, instituindo assim uma tutela administrativa sobre o poder judicial num processo penal. O Processo Marquês já era um processo de exceção, agora é-o formalmente - uma lei para todos, outra para este processo.
Nunca uma coisa destas aconteceu. Mas o Processo Marquês está cheio de primeiras vezes e ninguém diz nada - o único tópico permitido no debate público são as manobras dilatórias da defesa, nada mais deve existir.
Depois do grupo, é a vez de o juiz da Relação de ser fiel às recomendações, à política do facto consumado e à reclamação para o Totta. Decide, então, enviar para julgamento um acórdão que não transitou em julgado e que não é uma pronúncia. Na mesma onda, a juíza de instrução, sem ler o que quer que seja, despacha-o em poucos minutos - “atentos os prazos prescricionais, remeta-se imediatamente...”. Mas quais prazos, quais crimes, qual pronúncia? Nada disso interessa - o Processo Marquês é o faroeste jurídico: aqui, neste processo, fazemos a nossa própria lei. Dez anos depois querem promover um julgamento sem acusação e sem pronúncia.
Talvez deva lembrar os mais esquecidos que não temo as campanhas mediáticas organizadas - enfrento-as há dez anos sem quebra de ânimo. As notícias recentes que pretendem criar a ideia de um julgamento inevitável, é de que estão apenas a encerar o chão onde o espetáculo se vai realizar, são notícias fabricadas pelo Ministério Público e pelo grupo de trabalho do CSM que não me impressionam, nem me condicionam. São apenas um regresso ao pior do que já aconteceu no passado. Assim, calmamente, insisto no argumento - não pode haver julgamento sem pronúncia ou sem acusação. E acrescento - o infame acórdão continuará sob recurso.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.