Defesa europeia e Indústrias de Defesa - europeu vs. nacional: um sistema de sistemas frágil, mas melhorável
O choque da realidade, com a invasão da Ucrânia pela Federação Russa, demonstrou a fragilidade dos Sistemas de Defesa europeus, seja na sua capacidade industrial produtiva, seja na existência de capacidades militares disponíveis, de momento para apoiar a Ucrânia, mas, no futuro próximo, para conseguir dissuadir a Rússia de continuar a progredir para Ocidente ou para ter de lhe fazer face militarmente.
A falta de capacidades militares suficientes para fazer face às necessidades atuais e futuras, é a expressão visível dum conceito e duma prática, de que os Estados Unidos virão, caso necessário, em defesa da Europa, pelo que não seria importante investir em equipamentos militares, nem na sua produção. Mas o proble- ma é, como sabemos, bem mais grave do que isto, pois resulta dum deficit estrutural generalizado da capacidade industrial europeia, que não afeta só a Defesa.
A desindustrialização da Europa tem sido um processo continuo, baseado num conceito que a Europa teria de ser um produtor de serviços, pois seria daí que advinha a riqueza europeia. Claro que essas dinâmicas também afetaram Portugal, que já tinha uma base industrial de partida fraca, embora tivesse, fruto da Guerra de África, uma capacidade de produzir meios militares vários, que desmantelou ao longo dos últimos 50 anos.
A instabilidade internacional, a que se alia alguma imprevisibilidade com o que será a posição da futura administração relativamente à NATO, mais uma ameaça da Rússia a curto prazo, fez tocar as campainhas de alerta do Estado de degradação e desarticulação da designada Defesa Europeia. E o passo mais urgente para se ter uma capacidade de Defesa Europeia é termos Forças Armadas (FAA) dos países europeus com capacidades necessárias e suficientes para fazer frente às ameaças e desafios que se colocam à Europa, mesmo sem a ajuda do “amigo americano”, caso isso venha a acontecer.
Claro que, para a União Europeia (UE) ter uma Estratégia, é preciso mais do que ter uma capacidade de produção e sustentação dos aparelhos militares. Mas vamo centrar-nos hoje na capacidade da estratégia genética e da sua operacionalização através dos processos que conduzem ao reequipamento militar, centrado em indústrias militares europeias capazes de suprir as necessidades e de apoiar uma sustentação logística em operações militares, em caso de conflito ou guerra. Isto, claro, com o desejado grau de autonomia, ou seja, com uma percentagem elevada de produção em indústrias dos países da UE.
O recente Relatório Draghi sobre o “Futuro da Competitividade Europeia” radiografa e aponta pistas interessantes sobre a questão estratégica de aumentar a Segurança e reduzir as dependências, áreas onde a UE tem vulnerabilidades estratégicas comprometedoras da sua capacidade de Defesa, que ao tempo atual, impossibilitam uma autonomia estratégica. Cito numa tradução livre do relatório: “A Indústria de Defesa está demasiado fragmentada, o que prejudica a sua capacidade de produzir em escala, e sofre de falta de normalização e de interoperabilidade dos equipamentos, o que enfraquece a capacidade da Europa para agir como uma potência coesa. Por exemplo, 12 tipos diferentes de carros de combate são utilizados na Europa, enquanto os EUA produzem e operam apenas um.” E este é só um dos múltiplos exemplos da dita fragmentação e falta de normalização.
Embora a UE gaste em Defesa, no global dos seus países, cerca de 160 biliões de euros por ano e os EUA 390 biliões, portanto mais do dobro, uma boa parte do dinheiro europeu é gasto em aquisições fora do espaço europeu, especialmente na indústria americana. Além disso, a percentagem dos gastos europeus relativamente aos EUA (pouco menos de 50%) não reflete a percentagem em termos de capacidades militares, em que as FAA dos países europeus “só” têm cerca de 10% das capacidades das FAA dos EUA. Falta nítida de eficácia e eficiência no fragmentado processo de capacitação europeu.
Claro que os EUA, sendo um competidor económico, é um aliado estratégico pelo que, num mundo de competição geopolítica e geoestratégica entre as democracias e as autocracias, as sinergias entre o sistema de capacitação industrial americano e europeu é fundamental para fazer face à competição estratégica com a China, a Rússia, a Coreia do Norte e o Irão, principais produtores de equipamentos militares tecnologicamente mais avançados. Mas o caminho para a autonomia estratégica europeia exige a implementação duma Política Europeia de Armamentos, que o Relatório Draghi centra em grandes áreas como a procura e suprimento integrados dos equipamentos de Defesa, a existência de um mercado de Defesa europeu e de uma cooperação integrada nas áreas da investigação e desenvolvimento (I&D).
O avanço nesta direção pelos países da UE é uma completa revolução nas mentalidades nacionais e europeias, sejam ao nível político sejam dos próprios cidadãos. A implementação de medidas adequadas exige investimentos em Defesa, e em capacitação industrial e de I&D, que exigirão processos de financiamento muito maiores do que até aqui se faziam. Mas também trazem economias de escala, que induzem eficácia, eficiência e competitividade no sistema.
E Portugal tem de se posicionar, de imediato, nos segmentos que trazem valor acrescentado ao sistema europeu, de que destaco os sistemas aéreos não-tripulados, os sistemas de informação, a robótica, e algumas capacidades industriais de ponta, casos da metalomecânica, da eletrónica e da aeronáutica, entre outras. E há que trazer a investigação, a academia e a indústria para os processos de integração das novas tecnologias de duplo uso para as capacidades militares.
E aqui, as Forças Armadas terão de liderar este processo integrativo para terem os melhores sistemas de combate do futuro. Sobre uma melhoria, necessária, no processo de planeamento e de construção de novas capacidades militares para os conflitos do futuro, falaremos em próxima ocasião. Até porque terão de ser uma oportunidade fundamental para a revitalização da Indústria de Defesa nacional.
Tenente-general