De que nos falam as estátuas
O tema desta semana é a agalmatofilia. E o tema desta semana é a agalmatofilia por causa, e só por causa, de Preechar Chumpla ou, se quiserem, de Thao Suranari, ou Ya Mo, que fica em Non Somboon. Não é líquido sequer se Preechar Chumpla será mesmo agalmatófilo ou se estava tão-só drogado, mas o certo é que se encontrava nu, assim todo nu, feito palerma, ademais em casa dos pais, de onde fugiu pelo telhado. Passou-se isto numa manhã de Setembro passado - e, portanto, ainda em tempo -, quando aquele moço de 30 anos, sabe-se lá se com a droga, bateu nos seus velhotes, parece, escapou pelo tecto de casa e pôs-se a fazer sexo à vista de todos com a estátua de Thao Suranari, que é uma heroína da História da Tailândia e, por isso, tem uma bela escultura em Non Somboon, com quase dois metros de altura e 325 quilos de peso, todos em bronze. Na base, encontram-se as relíquias e os restos mortais da senhora, falecida aos 81 anos, razão pela qual o monumento é local sagrado e alvo de muita peregrinação, mesmo muita, e até de uma cerimónia anual por ocasião do Dia da Vitória, à qual comparecem as mais altas individualidades civis, religiosas e militares da província. Bronca tremenda, portanto, até porque a polícia demorou longos minutos a arrancar o rapaz de cima da heroína, com toda a gente a ver e a filmar para as redes.
Discutiu-se muito se Chumpla seria chalupa, se estava apenas drogado, como garantem seus pais, ou se este será um novo caso, mais um, de agalmatofilia, o amor desmesurado pela estatuária, parafilia descoberta pelos psiquiatras alemães do século XIX, pois claro, a que, dizem os linguistas puristas, será mais próprio chamar "agalmatoerastia". Sempre deliciosa, a Wikipédia brasileira remete-nos para outras entradas (ex. "boneca inflável") e esclarece que, e cito, "os vocábulos agalma, agalmatos, filos e erastes constam no dicionário grego-português e português-grego do Prof. Perseu". Não sei quem é o Professor Perseu, mas que fez um rico dicionário greco-português, ai isso fez.
Veio a calhar esta história, pois andava aqui há anos sem encontrar o ângulo para falar de Guidarello Guidarelli, que conheci em Ravena. Ignorava quem fosse, tropecei nele ao acaso numa das salas do museu da cidade, onde, aliás, nem se encontra exposto nas melhores condições de luz e lugar, nem com especial destaque. Não precisa: sita ao segundo andar, na Loggia del giardino, a sua estátua logo nos surpreende e fascina e, por um sortilégio qualquer, desperta o agalmatófilo que em todos nós existe; como eu, um casal de franceses estava por lá especado, irresistivelmente atraído, magnetizado, incapaz de se ir embora (depois chegou o guarda e recolheu-nos a todos).

© Vítor Higgs / DN
Trata-se da lápide funerária de Guidarello Guidarelli, condottiere ao serviço de César Bórgia, filho de uma família florentina distinta, condes e cavaleiros do Sacro Império, que foi combatente intrépido, espião da República de Veneza, conquistador de Faença, decerto um homem violento, com muita morte em cadastro. Foi morto em 1501, por alturas do Carnaval, dizendo uns que por vingança, pois constava ser agente duplo, do Papa e da Sereníssima, garantindo outros que em resultado de rixa: terá emprestado a um nobre amigo, Virgílio Romano, uma "linda camisa de Espanha com ourivesaria" (talvez um sobretudo) para que este se exibisse no Entrudo, mas, passadas as festas, Virgílio não quis devolvê-la. Abriu-se então séria briga, puxaram-se espadas em riste, e Guidarello acabou ferido, morrendo dias depois. Acontece que César Bórgia, bem o sabemos, não era homem para levar desaforos para casa e, mal soube do ocorrido, mandou capturar Virgílio e "li fé tajare la testa", que é como quem diz ordenou que fosse decapitado, coitado.
Até há uns anos, não havia dúvida de que a escultura era da autoria do renascentista Tulio Lombardo, mas agora há quem diga que não, afirmando até que pode tratar-se de uma cópia feita em meados do século XIX, ao gosto romântico. Há quem avente, inclusive, a hipótese de a família dona da escultura ter guardado o original e enviado uma imitação ao museu e, com o passar dos anos, foram tantas as reproduções, e expostas em tanta parte, de Buenos Aires a Aberdeen, passando por Nova Iorque e Moscovo, Chicago ou Otava, que talvez já nem se saiba ao certo qual o verdadeiro Guidarello, nem se a sua estátua foi mandada fazer pela viúva Benedetta ou pelo primo Bartolomeo. Em 1935, emprestaram-na para uma exposição em Paris, no Petit Palais, mas veio de lá com uma racha, no mármore do pé esquerdo, e com sinais evidentes de manchas, a prova de que quiseram tirar-lhe o molde, para fazer cópias. Desde então, nunca mais o moço saiu de Itália, pese sucessivos e insistentes pedidos de cedência.
Convertida em mito, é tanta a confusão e mistério em seu torno que desisti a meio do volumoso Guidarello Guidarelli tra storia e legenda, que o Museu de Arte de Ravena editou em 2012. Num dos capítulos, de Paola Goretti, discute-se longamente, em dezenas de páginas ricamente ilustradas, a camisa de Espanha que terá provocado a morte de Guidarelli e, noutro capítulo, com o lindíssimo título Baciare l"invisibile, ovvero la seduzione delle statue, Marco Antonio Bazzochi descreve a fundo a loucura que rodeia a estátua do condottiere, tido por sex symbol, um dos homens mais belos da História, sobre o qual corre a lenda de que todas as solteiras que o beijarem irão casar-se dentro de um ano e que, também dentro de um ano, todas as casadas irão ter um filho, tão lindo como o Guidarello. Lenda que terá sido criada por um dos directores do museu, o conde Vittorio Guaccimanni, também ele homem belíssimo, que se queixou dos encargos que tinha a mandar limpar as marcas do batom no mármore, osculado durante décadas, segundo dizem, por mais de cinco milhões de mulheres. Após os trabalhos de limpeza e restauro de 2004, acabou-se a beijoquice e a estátua é hoje vigiada por câmaras, mas ainda há quem teime apalpá-la, pois tanto e bem o merece.
Há ruas e prémios de jornalismo com o nome Guidarello e no inenarrável filme La raggaza di latta, de 1970, a actriz Sydne Rome, na pele de uma robô sedutora (!), tem uma cena atrevida com ele, ainda que não tão atrevida como a de um filme hard core, em que uma porn star pratica sexo com o mármore, segundo informa o Corriere dela Sera de 14/3/2022. Li num lado qualquer, mas agora não encontro, que, por volta dos Anos 1950 ou 1960, houve outra mulher famosa, também actriz ou parecido, que obteve autorização para passar uma noite junto ao homem pétreo, sabe-se lá o que fazendo.
Há pouco, coisa de duas semanas, conheci uma outra estátua, a do Hermafrodita Dormindo, ou Hermafrodita Borghese, em homenagem ao cardeal romano que, logo que a viu, a quis para si. Era tanto o poder dos Borghese (e quem queira saber mais leia The Families Who Made Rome, de Anthony Majanlahti, Pimlico, 2006, um apaixonante guia da Cidade Eterna), que existiram não um, mas dois cardeais com o mesmo nome e apelido de Scipione Borghese. Um deles, para o caso não interessa, pagou uma fortuna pela estátua do/da ou d@ hermafrodita e construiu na Villa Borghese, imagine-se a "Sala do Hermafrodita", convindo lembrar que estamos a falar de um altíssimo dignitário católico, não de um vulgar porcalhão.
A estátua, uma cópia romana do século II a.C., foi descoberta nos alvores do século XVII, por volta de 1608, quando andaram a remexer as entranhas da Igreja de Santa Maria della Vittoria, perto dos Banhos de Diocleciano. A pedido de Scipione, Bernini faria o colchão em mármore de Carrara onde está reclinada e, nos inícios do século XIX, o príncipe Camillo Borghese, que era casado com Pauline Bonaparte, a irmã mais novita de Napoleão, vendeu-a para o Louvre, onde hoje repousa sereníssima.
Em 1863, daria mote ao poema Hermaphroditus, de Algernon Charles Swinburne, de verso contundente: "A strong desire begot on great despair, / A great despair cast out by strong desire."
Não é, porém, peça única. Existem hermafroditas de pedra em Florença, nos Uffizi, nos Museus Vaticanos, no Hermitage de São Petersburgo, no Museu Nacional de Roma. O ano passado, com um subtítulo já ajustado à pandemia, foi editado um livrinho sobre o tema, chamado The Sleeping Hermaphrodite. Waking up from a lethargic confinement (Kylàda Press, 2022), que abre com um capítulo da autoria de Paul Preciado, nome que fatalmente nos lembra as saudosas galerias comerciais espanholas, fundadas em 1943 e falidas em 1995.
Nascido em Burgos em 1970, discípulo de Derrida, autor de livros como Um Apartamento em Urano (ed. Bazarov, 2020), Preciado é hoje um dos principais teóricos e activistas da causa trans-sexual: nasceu como Beatriz e lésbica, anunciou em 2014 que estava em transição, mudou para Paul, em 2015. Anos antes, em 2008, publicara Testo Junkie, uma denúncia da indústria farmacêutica (o "capitalismo farma-pornográfico"), com base na sua experiência em auto-administração de testosterona e na morte acidental de um amigo por overdose de medicamentação contra o VIH/HIV.
Não li nenhum dos seus livros, mas, pelo registo confessional, creio que não andarão longe do arrepiante, perturbante e comovente relato que a escritora de viagens britânica Jan Morris fez da sua operação de mudança de sexo em Casablanca, em 1972. Conundrum/Enigma. História da minha mudança de sexo, foi publicado em 2017 pela Tinta-da-china, com tradução de Paulo Faria, mas curiosamente, espantosamente, tivera uma edição portuguesa anterior, feita, imagine-se, em 1975, pelas Iniciativas Editoriais, com tradução de Wanda Ramos. Há 50 anos, portanto, e logo a seguir a ser dado à estampa em Inglaterra, era publicado em Portugal, sem grande escândalo, um relato autobiográfico sobre uma mudança de sexo, prova do vanguardismo dos nossos editores do tempo do PREC, mas também, creio, da indiferença e do alheamento que então havia, e continuou a haver, em relação a estas questões.
"É por isso que os gregos são grandes: numa lenda de há milhares e milhares de anos já prefiguravam os dramas que ainda hoje afligem milhares de seres humanos por esse mundo fora, para os quais, na esmagadora maioria dos casos, a ambiguidade sexual é tormento, não benesse (uso o termo 'ambiguidade sexual' para tentar abranger o máximo de realidades muito díspares e muito diversas)."
Mas, como o demonstra a abundância de tantas estátuas de hermafroditas, tais questões existem no nosso mundo desde os tempos gregos e romanos, pelo menos: nuns casos gerando repulsa, noutros fascínio, ambos em doses extremas, desvairadas. No Simpósio de Platão dizia-se que, nos alvores dos tempos, homem e mulher era um só conceito, fluido e difuso, e só depois se começaram a separar os géneros masculino e feminino e, além de hermafroditas dormindo, temos outros, mais despertos, como o do Museu Arqueológico Nacional, de Madrid.
O cardeal Scipione pode ter sido seduzido por uma atracção erudita pelo mundo clássico ou pela pulsão pelo bizarro que despontou na sua época, mas, depois dele, muitos cederam ao encanto das hermafroditas. Um dos casos mais espantosos (pois ele é também uma personagem espantosa) foi o do escritor e filósofo existencialista colombiano Fernando González, que após ter estudado num colégio jesuíta, de onde foi expulso por ter sido apanhado a ler Nietzsche e Schopenauer, formou-se em Direito e foi juiz, sendo nomeado, em 1932, cônsul da Colômbia em Génova. No ano seguinte, seria expulso de Itália, pois a polícia, ao vasculhar-lhe os papéis, descobrira um conjunto de notas contra Mussolini e o fascismo e outras contendo o esboço do seu livro El Hermafrodita Dormido, que seria editado pouco depois em Barcelona, pelas Editorial Juventud.
A obra é ilustrada com 12 desenhos das esculturas que o autor vira em Itália durante a sua efémera estadia consular, e, além de uma análise crítica de Mussolini, descreve a irresistível atracção que o colombiano sentiu pela estátua do hermafrodita existente no Museu Nacional de Roma. Foi lá dias seguidos e, ao final da tarde, pouco antes do museu fechar portas, aproveitava a distração dos guardas para acariciar a escultura, perdendo-se nos seus refegos: "Quisiera llevarlo y pegarle y besarlo, y adorar a dios en el", escreve no seu livro, confessando que a figura tivera nele o efeito de uma epifania, levando a olhar o mundo com outros olhos: "Desde mi encuentro com el Hermafrodita, compreendo muchas cosas que antes ni sospechaba. El reino de nuestro padre que está en los cielos tiene muchas moradas. Dios padre, Dios madre, en el fondo de la inversión yace en el ansia de perfección."
Sabemos a história e o mito, que Ovídio conta nas Metamorfoses: Hermafrodito, filho de Afrodite, deusa da beleza e do amor, e de Hermes, Deus da Razão, era o ser mais perfeito e mais belo que desde sempre existira. Um dia, já um rapaz feito, com 15 primaveras, foi até aos bosques da Cária, onde Salmacis, uma ninfa das águas, o tentou seduzir, sem sucesso. Depois de dar a nega a Salmacis, e julgando que ela tinha ido embora, Hermafrodito decidiu banhar-se num lago, mas a ninfa foi atrás dele, beijou-o ferozmente, suplicou aos deuses que os dois corpos se fundissem, e daí resultou um ente misto, ou inter-sexo, como agora se diz, devendo notar-se duas coisas: por um lado, Hermafrodito nasceu de um acto violento, nas raias da violação; por outro, não gostou do sucedido, ficou danado com o resultado, preso num corpo que não era o seu. É por isso que os gregos são grandes: numa lenda de há milhares e milhares de anos já prefiguravam os dramas que ainda hoje afligem milhares de seres humanos por esse mundo fora, para os quais, na esmagadora maioria dos casos, a ambiguidade sexual é tormento, não benesse (uso o termo "ambiguidade sexual" para tentar abranger o máximo de realidades muito díspares e muito diversas).
Em "Virar Travesti". Trajectórias de vida, prostituição e vulnerabilidade social (Tinta-da-china, 2020), tese de doutoramento em Serviço Social no ISCTE, Nélson Alves Ramalho dá-nos a conhecer o mundo, ou submundo, das trabalhadoras do sexo em Lisboa. O autor trabalhou alguns anos em projectos com prostitutas, ligadas às Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor, e, para a sua tese, passou anos em acção de campo, na zona do Conde de Redondo. Logo no início do livro, ao fazer a revisão da (escassa) literatura sobre o tema, mostra-nos que esta é uma realidade trágica e complexa, mas de há muito conhecida: dos trans-sexuais inquiridos num estudo de 1997, 56% trabalhavam na indústria do sexo e, desses, 92,9% na prostituição de rua. Quase metade - 46,4% - eram seropositivas. Em 2010, num grande estudo sobre profissionais do sexo, concluiu-se que 17,6% dos travestis eram seropositivos, um valor muito mais elevado do que o dos prostitutos masculinos (5,0%) e das prostitutas femininas (7,4%). A par disso, um universo dantesco: travestis automedicados com hormonas ou sujeitas a injecções de silicone sem qualquer supervisão médica; casos de tráfico de seres humanos e escravatura sexual; maior exposição a violências e abusos de toda a espécie, agravados por as vítimas serem quase sempre estrangeiras, sem papéis nem apoios.
Há tragédias horríveis, mais do que julgamos, como a de Gisberta Salce Júnior, de que nos falou admiravelmente Afonso Reis Cabral em Pão de Açúcar, e que vivia numa barraca na cave de um prédio inacabado, na Avenida Fernão de Magalhães, no Porto, onde, em Fevereiro de 2006, foi espancada até à morte durante dias seguidos por um bando de 14 jovens menores, com idades compreendidas entre os 11 e os 16 anos. Porém, mais do que as circunstâncias em que morreu e acabou deitada a um poço, que poderemos tomar por um gesto atroz, mas isolado, de um grupo de adolescentes, interessa falar da sua vida, muito antes desse crime: infectada com VIH/HIV desde 1996, Gisberta padecia de tuberculose pulmonar, pneumonia, candidíase laríngea, que lhe causaram astenia, anorexia, febre, anemia, dificuldades respiratórias, mialgia. Com a doença, teve de largar a prostituição, tornando-se sem-abrigo, viciada em drogas duras. E assim a descobriram os seus algozes. Dois anos depois, o corpo de "Luna", uma travesti brasileira de 42 anos, com surdez parcial, foi encontrado num contentor de lixo junto à Estrada Nacional 250, em Loures.
Nos inícios do século XX, o sexólogo Havelock Ellis criticou a expressão travestiten, cunhada por Magnus Hirschfeld para designar os trans-sexuais, considerando, entre o mais, que era incorrecto reduzir tudo ao acto de vestir, ou travestir, e propondo em alternativa o termo "eonismo" (não confundir com "eanismo"), em homenagem ao Cavaleiro d"Eon de Beaumont, diplomata e espião ao serviço de Luís XV, que durante 45 anos viveu como homem e, após a morte do monarca, viveria mais 33 anos como mulher. Simplesmente, são muito poucos os trans-sexuais que vivem como cavaleiros; em muitos e muitos casos, talvez a maioria dos casos, vivem da prostituição - e aí são alvo de abusos abomináveis e quotidianos.
É uma realidade devastadora, que a todos os humanos interpela, seja qual for a opinião que tenhamos sobre o modo como são travados os combates na luta por mais justiça - ou, se quisermos, por mais humanidade. Antes das opiniões e dos gritos, há factos, factos cruéis e singelos, singelos na sua crueldade, e a constatação mais do que óbvia, de senso comum, que as minorias sexuais, ou pelo menos parte delas, são alvo primordial de preconceitos e violências, de discriminações permanentes.
Nada disso legitima, ou sequer relativiza, como é evidente, gestos de igual desumanos, como o da actriz Keyla Brasil que, no passado Janeiro, subiu ao palco do São Luiz para insultar um colega de ofício e o seu trabalho, apenas e tão-somente por ele ser hetero e cis-género, coisa que, no entender de Keyla, o desqualificaria automaticamente para fazer papéis "trans". Ora, no dia em que um actor tiver de possuir todas e as mesmas características das personagens que interpreta, acabar-se-á o teatro, o cinema e as demais artes de representação (do latim repraesentatio = tornar presente o ausente). Assim, a menos que o fake tenha um sentido pejorativo, ofensivo ou discriminatório - o que não era manifestamente o caso na peça levada à cena no São Luiz, baseada num filme de Almodóvar, e por uma companhia especialmente empenhada na causa trans - ele é natural e legítimo, próprio de todo o teatro.
Pior do que Keyla, porém, esteve a direcção da companhia, a qual, ao invés de debater o assunto com ponderação e defender o actor visado e humilhado em público, escolhido para aquele papel, decidiu sumariamente despedi-lo, numa atitude cobarde que foi, também ela, de uma crueldade e de uma desumanidade grotescas, tanto maiores quanto, em Portugal, a profissão de actor é muito maltratada e precária, nada valorizada. Se Keyla Brasil se tivesse virado contra alguém com poder e com mando, teria sido uma coisa, mas, para agravar o seu caso, decidiu escolher o alvo mais fácil, mais imediato, o elo mais frágil de todos, um actor desprevenido e inocente de nome André Patrício, que alguns consideraram, imagine-se, um pormenor descartável, ou dano colateral e menor ante a justeza da causa. No fundo, foi como se um aluno estivesse a fazer um exame oral numa universidade e tivesse sido interrompido a meio e verbalmente agredido por outro colega, ou por um terceiro, com o professor a dar a prova por terminada e a aplaudir o que sucedera, secundado por um coro de comentadores e opinion makers mais apostados na bondade das causas do que na humanidade dos gestos.
No seu mutismo de mármore, ou talvez por causa disso, as estátuas falam-nos muito, a toda a hora, a todo o instante. As hermafroditas que dormem (vejam-nas na Internet, que placidez comovente!) mostram-nos que os trans-géneros, ou o que quiserem chamar-lhe, acompanham-nos desde há muito, há milénios, desde que existe civilização, e que, ao contrário do que supõe muita gente, não são invenção de agora, nem criação da cultura woke. Tratamo-los como se fossem estátuas, esculturas feitas de pedra, silenciamo-los, marginalizamo-los, empurramo-los para os abismos da prostituição ou da droga, loucura, morte. Mas não, não são estátuas, são humanos, humanos de carne e osso, talvez mais osso do que carne, que vivem e sofrem como nós - melhor dizendo, que sobrevivem sofrendo bem mais do que nós. Não sei se serão "problema" digno de intervenção da autoridade, mas seguramente são tema merecedor de humanidade. Pensemos nisso, portanto.
Historiador.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.