De novo “uma espetacular missa pela democracia”?
Escreveu, aqui no DN, Eduardo Lourenço a 6 de maio de 2002, no dia a seguir à segunda volta das Presidenciais francesas, em que a Frente Republicana ofereceu uma vitória esmagadora a Jacques Chirac sobre Jean-Marie Le Pen, o seguinte: “A França, como História e como cultura, deve ser o único país do mundo em que se vive - e é percebido pelos outros - sob um modo intrinsecamente estético. Ao que ela é realmente, à sociedade efetiva desta França nos alvores do século XXI, próspera, bem administrada, socialmente equilibrada, terra de acolhimento dos que a buscam como se fosse uma outra América que sabe não poder ser, ela prefere, periodicamente, a ficção. Quer dizer, a ideia platónica de si mesma que há mais de dois séculos a instalou no dever de utopia, não apenas política, mas ideológica e cultural, como pátria da Revolução.”
O ensaísta português, homem com longa vivência em França, continuava o artigo falando das “extraordinárias manifestações anti-Le Pen”, da “espetacular missa pela democracia” e o desejo da sociedade francesa de “restaurar na urgência a túnica sem mácula da Democracia tal como miticamente a cultiva”.
A citação de abertura oferece-nos uma certa ideia de França que existia em 2002 e creio que continua a existir em 2024. Mas as outras três passagens de Eduardo Lourenço que escolhi, apesar de se aplicarem bastante bem ao que sucedeu neste domingo na segunda volta das Legislativas francesas, devem fazer-nos pensar sobre o que aconteceu desde então no país.
Em 2002, a passagem de Le Pen pai à segunda volta foi um acidente de percurso para a democracia francesa, fruto mais da divisão no campo da esquerda, do que da real força da extrema-direita, então chamada Front National (valia menos de 20% dos votos). Houve, na época, um tremendo sobressalto republicano no final da primeira volta, que fez comunistas, socialistas, ecologistas e outros tais votarem no candidato da direita sem hesitação. E, assim, no dia a seguir à reeleição de Chirac, França, e também o resto da Europa, respirou de alívio, com a convicção de que teria sido um episódio bizarro, dificilmente repetível. Estava repudiado “o ideário visceralmente antidemocrático de Le Pen”, segundo Eduardo Lourenço.
Agora, em 2024, também muita gente respirou de alívio. Como respiraram de alívio quando Marine Le Pen, a filha de Jean-Marie, perdeu na segunda volta das Presidenciais de 2017 e de 2022, em ambas com resultados bem superiores ao do pai.
Nestas Legislativas, convocadas de emergência pelo presidente Emmanuel Macron depois do triunfo do Rassemblement National, novo nome da extrema-direita francesa, nas recentes Eleições Europeias, a vitória do partido de Marine e da aposta Jordan Bardella era dada como certa, só havendo a dúvida se alcançaria ou não a maioria absoluta. Não aconteceu, nem a vitória, nem muito menos a maioria absoluta, que lhes daria um primeiro-ministro, Bardella, a coabitar com Macron até 2027. E não aconteceu por ter havido um novo sobressalto republicano, a criação de nova Frente Republicana com desistências de candidatos de esquerda, de centro e de direita em círculos eleitorais onde, não indo três a votos, era possível travar a extrema-direita; e igualmente graças a uma participação eleitoral como não se via há décadas.
Mas se Eduardo Lourenço, em 2002, não se poupava nas críticas à esquerda por ter, com as suas contradições e divisões, permitido o êxito de Le Pen pai na primeira volta, agora é evidente que por trás dos resultados que permitem à esquerda celebrar, aos centristas de Macron respirar de alívio e aos sobreviventes da direita clássica aguentarem-se, o Rassemblement National surge como a força mais poderosa, consegue atrair cerca de um terço dos eleitores, e regista um ganho substancial no número de deputados em relação às anteriores Legislativas. Por comparação, só a extrema-esquerda, a France Insoumise de Jean-Luc Mélenchon, demonstra verdadeira vitalidade, sendo que algumas das suas ideias assustam até mesmo outros setores da esquerda. Esquerda (leia-se PS), centro (leia-se o bloco macronista), direita (leia-se Les Républicains, que não se aliaram à extrema-direita), terão de se reinventar se quiserem sobreviver e ter alguma influência no futuro de França.
Para já, o primeiro desafio será encontrar uma maioria governamental, dado existirem três grandes blocos na Assembleia Nacional. Depois, o desafio maior será perceber as razões de a extrema-direita ganhar terreno a cada eleição desde pelo menos há uma década. Só a normalização levada a cabo por Marine (rejeitando uma parte do ideário do pai) não explica tudo. Se tantos eleitores votam no Rassemblement National, é preciso perceber o que atrai no discurso extremista e o que está a falhar na democracia francesa, da economia à segurança. As Presidenciais, que no sistema francês são as mais importantes das eleições, acontecem daqui a três anos. Marine continua a acreditar que o Palácio do Eliseu está ao seu alcance.
Diretor adjunto do Diário de Notícias