De Kiev para a Haia, passando por Berlim
As notícias entram umas atrás de outras, numa cadência agitada, no jorro dos dias. Leem-se. E, depois, segue-se em frente, que a vida anda ocupada e não faltam coisas novas a que ficar atento.
Sobre a Ucrânia e sobre a agressão russa e bielorrussa, muito se tem discorrido sobre direito internacional. Fala-se da proibição do uso da força, de direito de autodeterminação dos povos, de contramedidas, do artigo 5.º do Tratado da NATO, do Estatuto do Tribunal Penal Internacional (como se fosse já garantida a condenação de ainda não se sabe quem). Vladimir Putin respondeu falando, a despropósito e de maneira insensata, de reação a um genocídio que só existirá na sua mente (nem isso é certo); de incapacidade de autodeterminação dos ucranianos; ou de ação militar especial (deve ser a tradução russa do termo agressão armada) contra uma ameaça iminente.
A Ucrânia aguenta, com uma extraordinária coragem que mobiliza o povo e nos mobiliza a nós, pelo exemplo. Mas, até na esfera jurídica, consegue surpreender-nos. Já lá vamos.
Aqui chegados, que notícias, afinal, devem destacar-se? Talvez duas, daquelas pequenas, mas que têm o potencial de envelhecer bem (como certos vinhos tintos mais capitosos).
A primeira notícia é que a Ucrânia apresentou uma queixa contra a Federação Russa junto do Tribunal Internacional de Justiça, invocando que a jurisdição da Haia tem competência para julgar o seu diferendo com a Rússia com base na Convenção para a Prevenção e Repressão do Genocídio, de 1948. Neste ponto, já alguns estarão a bocejar discretamente, como sói fazer-se entre pessoas educadas. Por favor, esperem mais uns instantes.
O que a Ucrânia pede é notável de inteligência jurídica. Não solicita ao Tribunal que condene este ou aquele Estado pela prática de genocídio. Mas lança uma estocada muito precisa, uma vez que faz ao contrário. Pede ao Tribunal, portanto, que, ao contrário das imputações russas, repetidas várias vezes por Putin, declare, com a sua autoridade muito especial, que nunca a Ucrânia cometeu genocídio no Donbass, pelo que é falso o pretexto fundamental para a Rússia agredir o seu vizinho. Não sei se esta queixa vai ter o mesmo destino daquela que apresentou a Geórgia contra a Rússia no mesmo Tribunal em 2008 (por causa de mais uma agressão russa), tendo este declarado em 2011, de forma discutível, não ter competência para o fazer. Mas, por ora, é muito bem jogado pela Ucrânia. Muito bem, mesmo.
A segunda notícia não parece, mas é daquelas que também têm um futuro perene. O chanceler da Alemanha, Olaf Scholtz, anunciou que o seu país percebeu bem os sinais que vêm de leste. Formulando de outra maneira: o chanceler apresentou neste domingo, durante uma sessão extraordinária do Bundestag, a sua intenção de consagrar pelo menos 2% do Orçamento à Defesa. Já, não num futuro qualquer que depois se esqueça no meio da névoa da memória.
As consequências da decisão, a confirmar-se, serão maiores do que a Porta de Brandeburgo, e vão mudar de vez a forma como se olha para a Defesa no continente europeu. Para se ter um termo de comparação, em 2021 a Alemanha consagrava 47 mil milhões de euros à Defesa. Agora, em 2022 (sim, neste ano) serão 100 mil milhões. Se se quiser outro termo de comparação ainda mais impressivo, a Rússia tem intenção de gastar em Defesa (em 2022) 51,3 mil milhões de dólares, o que corresponde, mais ou menos, a 46 mil milhões de euros, e estes dados são da agência Tass. Se assim for, os gastos - normais, não os que resultam de agressões armadas - em Defesa passam, portanto, a ser, nesta relação, de 1 (Rússia) para mais de 2 (Alemanha).
Pode contrapor-se, claro, que o ponto de partida (nem que seja o do arsenal nuclear) é muito diferente. Porém, a Alemanha nestas coisas é como os antigos motores a diesel. Demoram a aquecer, mas, quando postos em marcha, nunca mais se calam e duram até ao fim do mundo.
Professor associado da Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa