De Bucareste a Damasco, a democracia está bem e recomenda-se
Este é um admirável mundo novo, em que se acha natural que os tribunais declarem a invalidade de eleições com base em suspeitas de manipulação constantes de relatórios dos serviços secretos. Manipulação por misteriosos algoritmos que teriam encantado e enfeitiçado os eleitores levando-os, na solidão da cabine de voto mas sempre condicionados pelo hipnótico tik tok dos manipuladores, a votarem no candidato errado. Ora a democracia não pode permitir a eleição de um candidato empenhado em “acabar com a democracia”, de um cristão ortodoxo, pró-russo, anti-woke e crítico de Bruxelas, nem que para tal tenha de recorrer aos tribunais para anular as urnas e “salvar a democracia”.
Assim vai o mundo. E à falta de outros argumentos, vem a reductio ad Putinum. Quem denuncie como absurdo e ilegal este sistemático recurso aos instrumentos e poderes judiciais para contrariar eleições, só pode apoiar a invasão da Ucrânia de Fevereiro de 2022, nem que a tenha sempre condenado.
Mas condenar não é o mesmo que abstrair de uma conjuntura em que, considerando as coordenadas do pensamento do presidente russo e a geopolítica da Eurásia, a invasão não fosse de esperar, perante a possibilidade de ter a NATO a umas centenas de quilómetros de Moscovo.
Esta paranóia de criar um clima de reductio ad Hitlerum ou, neste caso, ad Putinum, a quem põe reservas ou nuances ao que se celebra como o pensamento certo, único e indiscutível, é uma forma de intimidação que tem outras implicações.
Tulsi Gabbard, a representante do Hawai, que foi acusada de ser amiga de Bashar Al-Assad, o ditador sírio, aliado de Putin, agora derrubado em Damasco, visitou Bashar Al-Assad, filho do ditador militar Afez Al-Assad, em 2017. Na altura, sublinhou bem o que pensava dele – que era um ditador corrupto e cruel para o povo sírio –, mas acrescentou que não o considerava um perigo para a segurança dos Estados Unidos. Perigo para a segurança dos Estados Unidos eram alguns grupos jihadistas que, um tanto ou quanto levianamente, o Deep State – ou alguém na América pelo Deep State – andava a apoiar.
Estes apoiantes festejam agora a queda do ditador amigo de Putin. Na alegre companhia de combatentes da liberdade está, precisamente, como líder principal, Abu Mohammed Al-Golani, do Hayat Tahir Al-Sham, uma organização anteriormente registada como Jabhat al-Nusra, filial síria da Al Qaeda.
Na complexa geografia dos movimentos religiosos radicais islâmicos, quase capaz de bater em número os movimentos esquerdistas domésticos do PREC, ou até a generosa lista de géneros e identidades à escolha, não é fácil classificar quem é quem e o quê.
Mas parece que podemos estar sossegados: a anulação das eleições na Roménia e a queda de um amigo de Putin são a prova provada de que a democracia está bem e se recomenda – e que, ou por decisões jurídicas sobre actos eleitorais ou através de combatentes da liberdade, peritos em decapitações e queima de templos infiéis, vai sempre reagindo democraticamente e com a coragem e a rectidão dos justos contra os autocratas deste mundo e o seu recém-chegado amigo americano que parecem querer, ignobilmente, acabar com ela.