David Trimble (1944-2022). O homem que sobreviveu à paz

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Olhando à volta ou em retrospetiva, a condição de herói é mais facilmente atribuída a homens que travaram guerras (César, Churchill, De Gaulle, Zelensky) do que a homens que conseguiram paz. Na história, Mandela foi talvez o exemplo mais fulgurante do oposto e David Trimble, nascido em 1944 no Ulster, falecido esta segunda-feira, outro deles.

Os Acordos da Sexta-Feira Santa ou, simplesmente, de Belfast, foram esculpidos e concretizados graças à sua vontade política. O estabelecimento de um entendimento entre protestantes (favoráveis à pertença ao Reino Unido) e católicos (defensores de uma independência que integrasse as Irlandas) garantiu-lhe o ódio de ambas as fações para o resto da vida e, no longo prazo, a morte do seu percurso público. Os primeiros, os seus, não lhe perdoaram sentar-se à mesa de negociações com os republicanos antes de estes se distanciarem do IRA, sem entrega de armas ou sequer anúncio de cessar-fogo, ou ter estado no funeral católico de uma criança vítima dos chamados Troubles, em que mais de 3500 vidas foram perdidas. Os segundos, ironicamente, não esqueceram que foi o seu acordo que, ao pôr termo a esse período traumático, assegurou um futuro onde a coexistência entre as partes decorreria sob as regras da política, e não do derramamento de sangue. E o Sinn Fein, à data, possuía mais experiência do último.

Trimble foi alvo de ameaças de morte, tentativa de atentado à bomba (diligentemente desarmada antes de chegar ao respetivo destino), insultos no seu próprio círculo eleitoral e um insucesso nas urnas que o levou a perder o seu lugar no Parlamento, em 2005, indo o seu partido (os Unionistas) de primeira para quarta força política em menos de uma década. Extraordinariamente, não levou nada disso a mal. "Eles vão operar convictamente nas estruturas e mecanismos que nós montámos há nove anos [com os Acordos de Belfast]. A ironia, tão deliciosa, é que quem os vai operar são todos os meus inimigos. E eu vou gozar essa vista". E foi assim.

Filho de um maçom e funcionário público, adorador de ópera e o primeiro da família a entrar na universidade, David Trimble era um político verdadeiramente excecional - ou melhor, verdadeiramente original por um conjunto de razões pouco comuns. Dava-se bem com as suas mudanças e, em simultâneo, com as mudanças em seu redor. Foi de underdog , quando concorreu à liderança dos Unionistas, voltando atrás no anúncio de não avançar, para improvável vencedor numa corrida a cinco. Foi de académico do Direito (casaria com uma ex-aluna), para político de combate, sem nunca ter exercido advocacia. Foi de sair porta fora a meio de reuniões, para inamovível na vontade de consenso. De hardliner entre loyalistas , para promotor do diálogo com o Sinn Fein. De inimigo declarado de Gerry Adams, para vê-lo partilhar guloseimas com o seu filho num evento. De conservador nas crenças (o "padre sem sotaina", chamavam-lhe), para coligado com os sociais-democratas e trabalhistas no governo. De opositor ao casamento gay, para sorridentemente levar a filha ao altar para casar com a noiva. De defensor acérrimo do Brexit, já com assento nos Lordes, para crítico da solução de Boris Johnson para a fronteira com a Irlanda.

O facto de o seu legado ser estrutural, deixando uma arquitetura de governação que dura até hoje, e não pessoal, tendo sido brevemente (1998-2002) o primeiro first-minister da Irlanda do Norte (cargo instituído pelos seus acordos) e de seguida obliterado pelos eleitores, torna-o diferente da maioria das personalidades políticas que marcaram o século XX, mas não menos merecedor de reconhecimento. Paradoxalmente, o seu sucesso foi de todos, menos seu.

Despido de carisma e de tato (abandonaria uma cerimónia com Bill Clinton para rumar a Palermo e ser seu cidadão-honorário), era dono de uma memória prodigiosa e de uma capacidade retórica que se fazia valer da simplicidade ("Claro que sim. O Blair é bom, o Clinton é bom, e eu sou um bocadinho insípido. Mas pelo menos não vendo tretas a ninguém") e de um patriotismo conhecedor da sua terra.

"Nós, na Irlanda do Norte, temos montanhas, não à nossa frente, mas atrás de nós. A sombra negra que vemos à distância é a sombra dessa montanha. Uma sombra do passado que se atira para o nosso futuro. E podemos deixá-la para trás se quisermos. Ambas as comunidades têm de fazê-lo porque ambas a criaram", afirmou no seu discurso de aceitação do Nobel da Paz, em 1998.

Ao reunir os dois lados na mesma sala pela primeira vez em 76 anos de conflito, David -, nunca Dave, nunca Davey - Trimble, pôs termo a quatro décadas de violência na sua ilha. Os dias de hoje, mesmo que o esqueçam, dificilmente esquecerão a paz que construiu.

Tinha 77 anos.

Colunista

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