Dar tudo a todos

Publicado a
Atualizado a

1 O mundo político português está esquisito. Em menos de dois meses, os partidos da austeridade e que se distinguiram na batalha contra um país que vivia acima das suas possibilidades, agora descobriram as virtudes da despesa pública. PSD e CDS que, na sua vida passista congelaram a contagem do tempo de serviço dos professores, negociaram agora em poucas semanas que esses anos voltem a contar.

O mesmo governo de direita anunciou também o fim da contabilização dos rendimentos dos filhos para a atribuição do Complemento Solidário para Idosos. Há mais de 15 anos que esta medida é defendida pelo Bloco de Esquerda e pelo PCP. Cada vez que estes partidos a apresentaram no parlamento foi sempre, sucessivamente, chumbada por PSD e PS.

Finalmente, e sem se atrapalharem com a coerência, aqueles que acusavam de despesismo todos os investimentos em infraestruturas públicas, anunciaram não a localização e construção do aeroporto de Lisboa, a ferrovia de alta velocidade até Madrid e uma nova travessia do Tejo. O mundo mudou, diria Sócrates.

Mas sosseguemos. Montenegro não transformou subitamente a Aliança Democrática numa força política de esquerda. A decisão do aeroporto só tem como resultado imediato dar à ANA a possibilidade de expansão do Aeroporto da Portela, que há muito anos almejava. A Ministra da Saúde acaba de anunciar que haverá novas fatias generosas do orçamento de Estado para o sector privado da saúde, que já come 40% da despesa do SNS mas que tem sempre fome do dinheiro dos contribuintes. E contra toda a evidência científica, Pinto Luz anunciou o fim dos tímidos travões desenhados pelo PS para limitar a expansão do Alojamento local e os seus efeitos nos preços da habitação nas cidades. Ao mesmo tempo, anunciou apoios às rendas que vão talvez aliviar famílias, mas que vão manter preços artificialmente altos e encaminhar mais dinheiro dos contribuintes para os bolsos dos senhorios. Finalmente, apesar do Ministro das Finanças ter ensaiado a narrativa de que “afinal há uma crise orçamental”, as dificuldades das contas públicas desapareceram rapidamente. Montenegro anunciou um corte no IRS de 1000 milhões de euros para os jovens “mais ricos”. E garantias do Estado para compra de casa própria, desregulação urbanística e subsídios para o sector da construção.

É uma festa: o governo da AD quer dar tudo a todos. Aos idosos e aos jovens; a proprietários e arrendatários; aos privados na saúde e aos monopolistas dos aeroportos; aos professores, ao sector da construção e alojamento local. Não se estranhe, nada disto é uma estratégia política. É uma tática de campanha eleitoral. O Governo de direita minoritário de hoje decidiu começar a preparar as condições para vir a ser governo maioritário amanhã. 

2 Com a nova liderança, também o PS parece ter descoberto um novo mundo. E nós, por outro lado, descobrimos um novo PS. Até há pouco tempo tinhamos um Primeiro Ministro socialista que ameaçou demitir-se se a contagem do tempo de serviço dos professores fosse aprovada no parlamento. Agora, o PS não só bateu palmas ao acordo com os professores, como, na verdade, tinha antecipado o Governo da AD, propondo um Orçamento Retificativo para acomodar esse novo encargo. Os socialistas também descobriram recentemente que as portagens nas autoestradas do interior são um entrave ao desenvolvimento e que IVA máximo da electricidade de 3 milhões de famílias é uma injustiça, por ser uma necessidade básica. Mais uma vez, é preciso lembrar que Bloco de Esquerda e PCP apresentaram múltiplas iniciativas na AR com estas propostas. Sempre chumbadas. Seria injusto dizer que o novo PS promete tudo para todos. Mas é indiscutível que há uma nova estratégia de afirmação. O PS está em campanha.

3 O Presidente da República mudou o tom e o conteúdo. Depois das legislativas de 2022, Marcelo Rebelo de Sousa andou dois anos na comunicação social entretido a “cenarizar” uma eventual dissolução da AR em tempos de maioria absoluta. Agora diz-se preocupado com a estabilidade governativa e a aprovação de um Orçamento de Estado. O PR parece pouco crente na longevidade do actual governo e, pasme-se, vem em seu auxílio.

4 Já o Chega carrega no discurso do racismo e na xenofobia, num país que não tem qualquer problema social ou cultural com a imigração. Ao mesmo tempo, a Ventura não falha a voz na crítica ao governo da direita. Sentada nas bancadas da AR, a extrema-direita vai deixando que as propostas do PS, do BE e do PCP sobre IRS, portagens e IVA na electricidade sejam aprovadas. O Chega parece já estar a trabalhar para novas eleições, onde espera continuar a sugar eleitorado ao PSD.

5 Só a esquerda à esquerda do PS é que ainda parece reconhecível. O que, na verdade, são más notícias para este espaço político. Bloco de Esquerda e PCP apresentam disciplinadamente as propostas que vêm defendendo há vários anos e que, no novo cenário, até parecem fazer caminho. Mas o problema não são as propostas. O problema é a dificuldade que têm em fazer a representação do mal-estar social que se instalou durante a governação das “contas certas” de António Costa. Se Bloco de Esquerda e PCP não forem capazes de ter iniciativa política de vulto correm o risco de continuar na rota descendente que têm protagonizado desde o fim da geringonça. Parecem ser o único espaço político que não vê que todos os outros partidos estão em campanha para as uma eventuais novas eleições legislativas e que concluiu que em estratégia perdedora não se mexe.

6 Ninguém parece acreditar na longevidade do governo. Neste contexto, as europeias parecem fazer funcionar apenas como uma “sondagem”, a caminho de outras eleições. Decisivo é confronto do Orçamento. Enquanto ele não chega, continuaremos em pré-campanha.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt