Dar que Pensar
São múltiplas e infinitamente variáveis as motivações dos mais ou menos 250 milhões de seres humanos convocados para, nos 27 países da "União Europeia", praticarem no dia 9 de Junho um ritualizado acto de fé.
Deixo aqui de lado a espinhosa questão de definir a palavra “democracia”, não sem primeiro notar que o filósofo holandês Matthijs van Boxsel a descreveu como a suprema expressão da estupidez humana: o povo, chamado a afirmar uma voz colectiva através do acto eleitoral, dissolve-se, eclipsa-se, desaparece, no exacto momento em que é suposto manifestar-se, porque é substituído no acto pelo eleitor que se encontra sozinho na cabine de voto a defender o seu interesse individual.
Giorgio Agamben, um outro filósofo, desta vez italiano, publicou recentemente um ensaio que dá que pensar. Intitulado Europa ou a Impostura, o texto argumenta que quase nenhum dos referidos 250 milhões de indivíduos eleitores se questiona sobre o significado político do seu acto, já que o chamado “Parlamento Europeu” não é, a bem dizer, um Parlamento no sentido em que os Parlamentos Nacionais o são. O “Parlamento Europeu” não é um órgão legislativo com poder de produzir leis. Esse poder repousa exclusivamente nas mãos da Comissão Europeia, uma instituição de carácter burocrático que o autor define como uma impostura que se exime ao sufrágio democrático.
Nem poderia ser de outra maneira, já que – como notou o famoso constitucionalista Dieter Grimm –, não existe, a bem dizer, um “povo europeu” que alguma vez se tenha exprimido no sentido de aprovar uma Constituição comum. Deste modo, a União Europeia não tem realidade legal e política legítima à face do Direito Internacional, e o “Parlamento Europeu” não resulta de um verdadeiro poder constituinte. A “Europa”, lembra Agamben, é uma impostura que simula que o “Parlamento Europeu” é uma fonte do Direito, quando na verdade o poder constituinte foi acaparado por uma burocracia de não-eleitos que, com o objectivo de se perpetuar, criou uma entidade pseudo-legislativa com existência fantasmática.
De mil e uma formas, a nossa insignificante rotina diária é tocada pela ciclópica máquina de produção de regras e normas que é a “União Europeia”. Como acontece com o Governo nacional, também o poder local é excessivamente esvaziado de autoridade legítima e se resume ao papel de veio de transmissão obediente e passivo do poder eurocrático. Esse poder é imensamente complexo e tornou-se demasiado entranhado para podermos imaginar a possibilidade de construir vida política para lá do seu âmbito. Mas, como também nota Agamben, a “União Europeia” é o principal obstáculo à materialização de uma Europa política.
Presos por votar, presos por não votar, lá nos encaminharemos no dia 9 para as cabines de voto a pensar como resolver os nossos problemas pessoais, familiares e comunitários: o fim do dinheiro antes do fim do mês, a espiral interminável da perda do poder de compra, a ausência de luzes no túnel infindável da nossa impotência. Assim como assim, acho mais bonito o acto de fé que é a missa dominical – aí, ao menos, sentimo-nos reconfortados na nossa pequenez pela natureza colectiva da comunhão ritual. E, se nos der para isso, podemos rezar para que, se se desagregarem o euro e Schengen – as inefáveis colas que vão segurando as tábuas da geringonça da EU –, o Céu não nos caia na cabeça com demasiada força.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico