Da taverna da aldeia à aldeia global

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O meu amigo Heinrich partilha o mesmo nome próprio com o príncipe alemão que foi detido a 7 de dezembro, acusado de estar à cabeça de uma associação de extremistas ultranacionalistas que sonhava tomar de assalto o parlamento em Berlim. No total, foram presos 25 conspiradores, numa operação que mobilizou milhares de polícias em várias localidades da Alemanha. Este grupo constituía a parte mais violenta de uma rede de radicais, à volta da qual se movimentam mais de 20 mil cidadãos, segundo as estimativas das polícias alemãs que se ocupam deste tipo de ameaças -- o Ofício Federal para a Proteção da Constituição, o Serviço Federal de Inteligência e o Serviço de Contrainteligência Militar.

Também por coincidência, nesse mesmo dia, Heinrich e os seus amigos da aldeia onde vive há dezenas de anos, a uma hora por estrada a norte de Berlim, uma terra que fizera parte da Alemanha do Leste, juntaram-se na taverna do costume. Tratava-se de cumprir uma rotina que permite aos homens sair de casa e passar uma parte do serão à volta de umas canecas de cerveja. O tema da noite foi essencialmente sobre o campeonato do mundo de futebol. O príncipe, as detenções, o radicalismo, não mereceram grande atenção. Quando lhe perguntei a razão, Heinrich disse-me que é sabido que existem extremistas nalguns setores da sociedade, incluindo entre os militares, os polícias e as elites profissionais, alguns mesmo saudosistas dos tempos imperiais. A ação policial do dia não era, por isso, uma notícia particularmente surpreendente. Acrescentou que, na sua opinião e dos outros moderados, essa gente não tem qualquer hipótese de ir além da excentricidade das suas maluqueiras políticas. Fazem parte da paisagem. Mesmo o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), profundamente racista e neonazi, que nas eleições federais de 2021 alcançou mais de 10% dos votos, pertence agora a um novo normal, embora esteja sob a vigilância dos serviços de inteligência interna.

Acho tudo isto inquietante. Mas o que de facto preocupa o meu amigo é saber que as teorias conspirativas são cada vez mais recetíveis junto de segmentos da população. Sobretudo, se as patranhas vêm de Moscovo. No leste da Alemanha ainda há muita gente que foi educada durante o regime comunista e que acredita em todo o tipo de baboseiras, principalmente se tiverem os americanos como os maus da fita. A linha narrativa é sempre a mesma: os caubóis têm como objetivo controlar a Europa, sob a capa da NATO. E, para começar, impedir a Alemanha de comprar o gás barato vindo da Rússia. E rematam que quem não vê isso é limitado da carola.

A filosofia política dessa gente é de um simplismo alucinante.

Entretanto, esta semana, os americanos tiveram outras preocupações. Joe Biden organizou uma cimeira de três dias em Washington com os seus homólogos africanos, o que não acontecia há oito anos. Correu bem. Apenas os governos resultantes de golpes de Estado ou abertamente hostis aos americanos não foram convidados -- o Burkina Faso, a Eritreia, a Guiné-Conacri, o Mali e o Sudão.

Considero fundamental que os países ocidentais reforcem as suas relações com a União Africana e os seus membros. O desenvolvimento de África é um dos grandes desafios que não tem tido uma resposta adequada, apesar das somas consideráveis que o Ocidente dedica anualmente à ajuda humanitária e ao desenvolvimento.

Há que repensar as prioridades. É preciso investir mais na produção alimentar sustentável e nas energias renováveis, na facilitação do comércio, na boa governação e no desenvolvimento humano. Apresentar o relacionamento com África como uma rivalidade entre o Ocidente, a China, a Rússia, ou mesmo a Turquia e a Índia, é um erro. Em termos absolutos, é impossível competir com a China, por exemplo. O comércio desta com África atingiu, no ano passado, 254 mil milhões de dólares norte-americanos. É um valor muito superior aos 64 mil milhões de trocas entre os EUA e África, no período equivalente.

A economia é importante, sem dúvida. Mas a insistência em políticas que respeitem as pessoas -- a sua segurança e a democracia -- é o pilar fundamental para evitar o caos internacional. Essa é a mensagem que cimeiras como a de Washington devem sublinhar. E é isso que tento explicar, algo nem sempre fácil, ao meu caro Heinrich.

Conselheiro em segurança internacional.
Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

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