Da prole de littĕra, ou de como o léxico se vai adaptando às necessidades

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"Literacia", de origem anglófona, terá sido cunhado no português europeu na década de 1990, no relatório Literacia em Portugal. Resultados de uma pesquisa extensiva e monográfica, no qual se define o termo como capacidade de processamento de informação escrita, na vida quotidiana (social, profissional, pessoal), através da leitura, escrita e cálculo. Isoladamente, o termo não levanta problemas: tem alguma dose de transparência (deixa inferir que tem algo a ver com letra, leitura, literatura), mas, como as palavras não existem isoladamente, antes ganham sentido da relação que estabelecem com outras, a importação de "literacia" criou um problema: como designar em Portugal uma pessoa capaz de processar informação escrita? Letrado? Literato? "Literado", como intuitivamente escrevem os meus alunos?

De acordo com o Oxford English Dictionary, literacy ocorre nos EUA, em 1880, como antítese de illiteracy (conforme atestação apresentada), para denominar a qualidade, condição ou estado de quem sabe ler e escrever. Em 1943, também nos EUA, surge o uso de literacy como competência ou conhecimento numa determinada área. Por seu turno, o adjetivo literate, inicialmente proveniente do latim litteratus (de littĕra, letra), desenvolveu três sentidos, atualmente raros: a) o de culto, erudito (séc. XV); b) o de capaz de ler e escrever (séc. XVII); e c) o de relativo à literatura, literário (séc. XVI). Já o nome correspondente, literate, antónimo de illiterate, é de uso corrente desde o séc. XIX, para denominar a pessoa que sabe ler e escrever.

A palavra latina littĕra deu origem a letra, em espanhol e português, e lettre, em francês, língua da qual o inglês importou a palavra letter, que permitiu formar os adjetivo e nome lettered, usados desde o séc. XIV para caracterizar ou denominar quem sabe ler e escrever.

Lettered, do inglês, corresponde, assim, formalmente à nossa forma "letrado" (via popular), enquanto litterate corresponde a "literato" (via erudita). O dicionário Houaiss situa a primeira atestação de "letrado" (culto, erudito) no séc. XIII, registando uma segunda aceção, da década de 1980: "capaz de usar diferentes tipos de material escrito". Esta relaciona-se diretamente com a forma "letramento" (registada em 1899 por Cândido de Figueiredo), sinónimo de "alfabetização" e, desde os anos 1980, equivalente de "literacia" no Brasil.

Existe ainda "letrismo", que o Houaiss data do século XX, sem etimologia, e para o qual dá como primeira aceção a de atributo de quem sabe ler e escrever. Talvez esta forma provenha do francês iléttrisme, cunhado pelas décadas de 1970 ou 1980, para denominar a incapacidade de compreender um texto escrito; léttrisme designa em francês a corrente literária inaugurada por Isodore Isou em 1946.

Como designar em Portugal uma pessoa que possui literacia"? No Brasil, a questão ficou resolvida pela adoção de "letrado" e "letramento". Existe, assim, a possibilidade de incorporar o par na terminologia portuguesa; tal parece-me, contudo, improvável, dada a implantação de "literacia" e o preconceito que ainda se vai nutrindo pela variedade brasileira do português. Atribuir uma nova aceção a "letrado" será semanticamente a escolha mais simples (melhor que "literato", com conotações depreciativas), mas perde-se a relação formal com "literacia". Assim, "literado", o insólito neologismo espontâneo dos meus alunos, candidata-se (quem sabe?) a vir a ser adotado na provecta prole de littĕra.

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