Da natureza da democracia
A meio do seu primeiro mandato, Barack Obama recebeu o seu antecessor na Casa Branca para a apresentação das pinturas de George W. Bush e sua mulher Laura Bush, que se juntaram à coleção de quadros de ex-chefes de Estado e ex-primeiras damas (até agora ainda não houve um primeiro cavalheiro na História dos Estados Unidos, o que poderá mudar no próximo ano), que se encontram pelos corredores da sede do poder executivo americano.
Durante uma cerimónia muito informal, que ainda pode ser vista na internet, os presidentes e respetivas mulheres trocaram simpatias e alguns comentários humorísticos sobre a partida da família Bush e a entrada da família Obama na Presidência.
A certa altura Obama comenta que uma marca permanente da democracia americana era a forma elegante e civilizada com que o poder passava de um presidente para o seguinte, independente das ideias e ideologias que cada um defendia, ou da maior ou menor combatividade que a campanha eleitoral pudesse ter tido. No fim do dia, as pessoas votaram e quem perdesse passava as rédeas do poder a quem ganhasse.
Mal sabia o presidente Obama que a transferência de poder entre o derrotado presidente Trump e o eleito presidente Biden deitaria fora mais de 200 anos de tradição e respeito pela democracia e que assistiríamos em direto a uma multidão a invadir o Capitólio para tentar impedir pela força o que eleitores tinham decidido na pacatez das cabines de voto.
Já depois da derrota de Donald Trump e tomada de posse de Joe Biden, assistimos à invasão do Congresso brasileiro por apoiantes do presidente Bolsonaro e, no sentido oposto, testemunhamos a imaculada passagem de poder entre o derrotado primeiro-ministro conservador e o seu sucessor trabalhista no Reino Unido.
Uma democracia não se caracteriza só por realizar eleições. Uma democracia é um sistema que trabalha para garantir que os direitos individuais e coletivos das pessoas são respeitados, que os limites e preceitos da lei são aplicados por todos e que quem ocupa temporariamente o poder não ultrapassa os limites.
Uma democracia é também um sistema que só funciona quando quem ocupa um lugar de responsabilidade percebe que quem votou não lhe deu direitos, mas a responsabilidades de zelar pelo bem-estar de todos.
Em 2024 mais de metade da população do mundo foi ou será chamado a votar em eleições e 4 mil milhões de pessoas poderão exprimir os seus desejos e aflições. Algumas acontecem em democracias e outras servem apenas para tentar iludir eleitores e o mundo. Que, na maior parte das vezes, as pessoas se sintam impotentes para reagir é frustrante, mas certamente compreensível. Que as democracias do mundo ignorem a realidade dos sistemas autocráticos é fechar os olhos à sua própria natureza.