Da habitação à construção, a semântica

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Há alguns meses o anterior Governo apresentou um programa para a resolução dos problemas da carência de habitação com que estamos confrontados. Um programa que foi sendo debatido, contestado ou apoiado, e foi agora, pelo actual Governo, substituído por um novo programa em que se mantiveram algumas das medidas e, naturalmente, se alteraram outras.

Não é sobre as medidas propostas num ou noutro que me vou aqui referir, pois não é aqui, nem agora, o local para o fazer. Este é um assunto demasiadamente complexo, cheio de contradições e com implicações políticas, sociais, económicas … etc., que estão muito para além da necessidade de casas a que, geralmente, tem sido limitada a sua discussão. Um problema com que, aliás, vamos ter de conviver ainda durante bastantes anos, mas sobre o qual é urgente tomar decisões.

E a primeira necessidade para que se tomem decisões é a de definir com clareza quais os objectivos que se pretendem atingir. São justamente esses que agora mudaram, algo subtilmente, quando se deixou de falar no problema da habitação para se passar a falar na necessidade de construção.

Habitar pressupõe, como todos sabemos, toda uma série de aspectos que, desde a organização do território, aos transportes e aos mais variados equipamentos e serviços são absolutamente necessários para assegurar a qualidade de vida e a resposta às necessidades individuais e colectivas dos seres humanos.

Pelo contrário, a construção quantifica-se em metros quadrados e, geralmente, para além de umas vagas intenções, sempre incluídas em qualquer preâmbulo, pouco liga à qualidade do que é feito. Uma qualidade que não se pode limitar ao cumprimento de normas técnicas física e directamente mensuráveis, e onde se deveriam integrar preocupações envolvendo a qualidade das soluções interiores e dos arranjos urbanos que nunca ali são consideradas.

Não o fazer é apenas prolongar o problema, como aliás ele se tem vindo a prolongar e mesmo a agravar em muitos países (como nos nossos vizinhos em Espanha e França), com resultados dramáticos. Países onde, apesar dos fortes investimentos feitos há algumas décadas, em habitação dita social, são inúmeros os conjuntos urbanos hoje totalmente degradados, e a necessitar a sua urgente substituição com a consequente demolição.

Espaços onde, ao contrário do que é geralmente referido, o problema não são as pessoas, mas sim a construção de guetos onde, há muito, não é possível viver.

Preocupante nesta situação é que esta não é uma alteração de semântica, é uma profunda mudança de objectivos políticos. Aparentemente eficaz no curto prazo, até pela facilidade da sua quantificação, tem sido a causa de situações não só ineficazes, como potenciadoras do agravar do que assim se pretende resolver.


Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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