Da ficção política bem real à ficção em que vivemos
"Uma regra básica de governação é nunca abrir um inquérito a menos que se saiba com antecedência quais serão as conclusões.” A frase é ficcional - 6.º episódio da terceira temporada de Yes, Minister, série da BBC dos anos 80 que deveria ser de visionamento periódico obrigatório para políticos e comentadores - mas a sua realidade é indesmentível.
Foi assim no Caso das Gémeas, com um relatório final, do Chega, cujo teor é tão enviesado que poderia ter sido escrito ainda antes de qualquer inquirição; o mesmo na Comissão Parlamentar de Inquérito à gestão da TAP, que “deitou fora” quaisquer dados novos comprometedores para o governo de Costa - incluindo todo o Galambagate, com o argumento de que estava fora do âmbito daquela comissão; idem para a CPI à atuação da ERC (o regulador dos media) no âmbito da reestruturação acionista do Global Media Group (de que faz parte este jornal), na qual tivemos a deputada Mariana Mortágua a disparar um conjunto de 21 perguntas de rajada a uma testemunha que teria 10 minutos para responder. Obviamente que não pretendia obter respostas plenas...
Por tudo isto (e não só), é uma ficção afirmar que as CPI são “o instrumento para apurar a verdade”, como tem andado a dizer o líder do PS, Pedro Nuno Santos - ideia repetida por vários comentadores. Mas esta não é a única ficção que o país gosta de viver.
Nos últimos dias, criou-se a nova ficção de que só o primeiro-ministro se furta a responder a perguntas dos jornalistas. A ideia, que nasce na oposição, tem sido repetida ad nauseam em painéis de comentários. Como se literalmente TODOS os políticos não tivessem já fugido a respostas. Vamos rever os debates de campanha? Foi só há um ano...
Já neste espaço referi a ficção com que toda a gente, da esquerda à direita, vive feliz relativamente às possíveis “incompatibilidades” dos advogados em funções públicas, protegidos pelo sigilo profissional. Mas na semana passada, por duas vezes, o antigo ministro da Presidência Nuno Morais Sarmento lembrou que temos uma Lei das Incompatibilidades tão ‘realista’ que, no caso dele, enquanto esteve em funções governativas (com Durão Barroso e Santana Lopes) seria obrigado a garantir que nenhum dos seus “sete irmãos”, na sua atividade profissional, teria qualquer negócio com o Estado... “Caí em ilegalidade quase de certeza!”, admitiu em comentário à CNN. Pois!
E nestas ficções vamos vivendo, felizes e contentes. As mesmas daqueles que dizem que, sei lá, era razoável Luís Montenegro ser obrigado a fechar a sua empresa - e, como tal, obrigá-lo a desistir de um projeto profissional para os filhos...
Em toda a sua magnífica sátira, Yes, Minister e a sua excelente sequela, Yes, Prime Minister, falhou: não previu que o mundo político pudesse entrar numa espiral de alucinação coletiva como aquelas em que Portugal se especializa. Em termos de qualidade, a série, ficaria pior. Mas para quem visse de fora era capaz de fazer rir ainda mais.
Editor do Diário de Notícias