Da democracia na América

Publicado a

Em meados do Séc. XIX um aristocrata francês chamado Alexis de Tocqueville foi enviado aos Estados Unidos para estudar o sistema prisional. No regresso trouxe na bagagem um conjunto de observações sobre a revolução americana que deram origem a um dos grandes clássicos do estudo da ciência política. No seu Democracia na América Tocqueville fala de uma experiência política nova onde a soberania pertence às pessoas e onde a separação de poderes entre as instituições estabelece limites e mecanismos de controle sobre quem exerce o poder político, no potencial de emancipação das mulheres e dos mais frágeis na sociedade.

É óbvio que a experiência histórica dos Estados Unidos não está isenta de críticas, e a discriminação racial ou a fragilidade dos mecanismos de apoio social a quem mais precisa continuam hoje a manchar os muitos sucessos da democracia americana. Mas, como lembrou o presidente Kennedy à sombra do Muro de Berlim, as democracias liberais nunca precisaram erguer muros para impedir que os seus cidadãos fugissem para irem viver em ditaduras ou autocracias.

Naturalmente, a própria ideia de o que é uma democracia evoluiu muito desde as observações de Tocqueville e hoje exigimos um mecanismo complexo que inclui o respeito pelos direitos políticos e civis, mas também pelos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, protegidos por um sistema de Estado de Direito onde todos somos iguais perante a lei. E precisamos de um processo eleitoral livre, justo, periódico e secreto para escolhermos quem nos representa, acompanhado de formas de controle do que é feito em nosso nome por quem ocupa, temporariamente, as instituições do Estado. Não esquecendo que uma democracia é uma construção humana e, portanto, um processo sempre incompleto e sempre imperfeito, basta um desses elementos estar ausente ou ser ineficiente para nos obrigar a questionar a saúde do sistema e a procurar melhorá-lo.

Se Tocqueville regressasse hoje aos Estados Unidos teria de repensar muitas das suas conclusões. Quando o presidente ignora que a constituições determina a cidadania a quem nasce nos Estados Unidos e recusa esses direitos a filhos de imigrantes, proíbe o acesso da Associated Press à Casa Branca porque não gosta da respectiva linha editorial, cancela contratos de investigação científica com universidades porque os respectivos estudantes participaram em manifestações e expulsa do país os manifestantes estrangeiros, anuncia que os tribunais não têm competência para se pronunciarem sobre as decisões da Casa Branca e ameaça demitir os juízes que o fizerem, afasta os funcionários públicos que não concordam com as suas políticas, deporta pessoas sem lhes permitir recorrer aos tribunais para se defenderem, suspende os mecanismos de apoio a minorias, para mencionar apenas algumas das coisas a que temos assistido nos últimos 3 meses, somos levados a questionar o apego da Administração Trump à democracia.

Robert Hutchins, que foi Reitor da Universidade de Chicago entre 1945 e 1951, disse que “a morte da democracia não será por um assassino escondido. Será uma lenta extinção devida à apatia, indiferença e desleixo”. O que está a acontecer hoje nos Estados Unidos poderá ser o início de uma mudança profunda nas instituições que, se nada for feito, levará a uma profunda degradação e eventual extinção da democracia americana num processo muito mais rápido do que Hutchins antecipava.

Professor Convidado IEP/UCP e NSL/UNL

Diário de Notícias
www.dn.pt