Da cidadania cívica e da cidadania identitária
Quando os grupos humanos decidiram estabelecer comunidades, tivemos que criar um conjunto de regras que nos permitem viver e conviver no mesmo espaço público e respeitar o espaço de privacidade, onde nem o conjunto da comunidade, nem as outras pessoas têm direito ou licença de entrar. E decidimos que, para conseguirmos ter essas áreas delimitadas e protegidas, teríamos de aceitar que haveria leis que nos impediriam de fazer algumas coisas. Ao mesmo tempo, e para que aquelas regras tivessem significado, estabelecemos as instituições necessárias para, quando fosse necessário, tivéssemos a quem bater à porta e exigir que os nossos direitos individuais e coletivos fossem repostos. A isso chamamos o Estado de Direito.
E para decidir o que podemos ou não fazer, estabelecemos mecanismos de tomada de decisão onde escolhemos quem irá falar em nosso nome e defender as nossas causas e preferências. E a isso chamamos eleições livres, justas, periódicas e secretas que determinam quem irá compor o Parlamento e o Governo. E para que esses representantes ajam dentro das regras das leis e da Constituição e vigiado por uma comunicação social livre que nos permite saber o que se passa em nosso nome. E a isso chamamos eleições e controlo das instituições.
A tudo isto, a funcionar como um sistema integrado, chamamos democracia. E encontramos exemplos um pouco por todo o lado na Europa, nas Américas, em África, na Ásia e na Oceania.
Assim, o mecanismo de uma democracia moderna e funcional traduz-se num princípio simples, mas fundamental: tudo aquilo que não for proibido está, por definição, autorizado. Nós, cidadãos de uma democracia, não precisamos de autorização para fazermos o que mais gostamos, desde que as nossas preferências não sejam contra as leis, mesmo que as nossas escolhas sejam diferentes das escolhas de todas as outras pessoas com quem partilhamos o mesmo espaço. E a esta capacidade de viver a minha vida livremente, desde que cumprindo as regras que foram estabelecidas, chamamos Cidadania Cívica.
Mas agora aparece cada vez mais uma outra ideia de cidadania. Uma ideia que despreza os direitos fundamentais de quem quer viver a sua vida de forma diferente, mesmo que essas diferenças em nada prejudiquem quem não as partilha ou sequer compreende. Uma ideia que recusa o que é diferente e que entende que só quem partilha a mesma identidade tem direito a partilhar o mesmo espaço. Uma ideia que nega a cidadania e considera menor e com menos dignidade quem não partilha a identidade da maioria. Uma ideia que deseja mandar na nossa intimidade e na nossa privacidade. E a isso chamamos cidadania identitária. Mas poderíamos chamá-la pelo seu outro nome: uma ditadura da maioria.