Crónica de Portugal, país estrangeiro

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Os meus 20 anos coincidem com a “Primavera marcelista”, breve “estação” em que cheguei à rádio profissional. Entre essa e a verdadeira Primavera, escassos anos. Passados entre luz de estúdios e sombra de casernas com vista para a guerra, mancebos condenados ao serviço militar obrigatório.

- “Mancebos?!” o que estava à minha frente, na fila da inspecção, ofendeu-se.

- “Aqui não há diferenças! somos todos iguais, ora essa!”.

Éramos todos mancebos e o futuro de cada um começava ali. Por isso, um dia, estava o sol a pôr-se, passei os portões da Escola Prática de Infantaria. Era em Mafra, mas lá só se pensava na Guiné. E em Mueda, donde chegariam notícias clandestinas, José Bação Leal escrevendo num desespero que já prenunciava a morte: “Mueda? Guiné? Ninguém me rouba a flor (vermelha!) dos lábios”.

A poesia era o exílio virtual para onde poderia desertar. No Gil Vicente, a professora Aliete Galhoz ajudara-me a acreditar. Também Mário Castrim, que coordenara o suplemento Juvenil do Diário de Lisboa. Com essa armadura de palavras, foi o soldado cadete enfrentar as G3 do C.O.M., o curso de oficiais milicianos:

Pernoito em pé / e sofro os calos / desta noite. / Pernoito em cão / que emperra, / neste galgo / em pé de guerra.

Mascaro cada passo, / do mais caro riso, / enquanto aparo / a bala que disparo.

Esta é a bala que abala / a fome de quem a come. / Aponto ao ponto de mira / e quando o cão atira / ao corpo, a bala some.

Refeição completa, /como à mão o pão / que corto à baioneta.
Este cão é o pão de guarda / que se mastiga / e faz crescer carda / na barriga. / Este pão é urtiga com mostarda. / Este pão é uma ferida / no interior da farda. / Este pão não tarda / a vida.

Este pão cala a silhueta. / Este pão é uma baioneta / no peito / e muito bom proveito!

O colete que dispo / é um abismo de verdete. / É um cadete sem lua / do outro lado da rua.

O cadete passa da EPI para a EPAM e segue, aspirante, para o RI5, onde foi possível pedir aos soldados, na messe, que nos tratassem pelos nomes (alô Teixeira, onde quer que estejas!) e não pelos postos. Ou responder ao comandante que se preocupasse mais com os que sofriam na guerra e menos com o tamanho dos nossos cabelos. Sim, era fraca subversão. E poder falar assim, sem “levar uma porrada”, já seria sinal dos ventos que sopravam.

Nos dias úteis, tropa em farda verde. Aos fins de semana, rádio, em calças vermelhas! Cotelê comprado nos Porfírios, a novidade de Lisboa. Em 71 e 72, umas agitações: o Festival de Vilar de Mouros, o Cascais Jazz. E outras: as Novas Cartas Portuguesas, a vigília da Capela do Rato, o assassinato, pela Pide, do estudante Ribeiro Santos (além daquilo que se passava sem que soubéssemos). E, entre ditaduras, Chico Buarque passando por cá e falando de fascismo. Foi no Edifício Philips, nas Amoreiras. Estive lá, pelo Tempo Zip que se esforçava por iludir o espartilho das censuras (a oficial chamava-se agora Exame Prévio). O programa era emitido ao fim da noite, na Rádio Renascença, a “emissora católica portuguesa” onde, se até partes de encíclicas e pastorais eram censuradas, porque é que haviam de ser livres, peças “pouco católicas” para os cânones censórios? reportagens e entrevistas sobre a situação social, a vida das pessoas? Em papéis que guardei, está que, só no primeiro trimestre de 1972, em cerca de uma centena de trabalhos, a censura da estação proibiu, total ou parcialmente, mais de metade. E na estimativa não entram os temas proibidos à partida, como era o caso da guerra colonial. Logo esse, central na vida dos portugueses!

Devido à repetição de uma crónica de Adelino Gomes, antes transmitida no Página Um, os dois programas seriam suspensos e o jornalista despedido. Uma história que mostra como o Exame era Prévio e não só.

Entre uma passagem pelo Serviço de Noticiários da RR, entretanto criado, e outra pelo Diário de Lisboa, acabaria o serviço militar no RAC, no Outono de 1973, o ano em cujos subterrâneos já avançava, sem que eu soubesse, o Movimento dos Capitães.

Agora no Rádio Clube Português, começo por ocupar-me de uma tarefa para o qual corria entusiasmado, diariamente: o programa No Mundo Aconteceu, um resumo informativo do dia a que dedicava todo o horário, garimpando nos jornais, as notícias que dessem algum sinal da crise política. Como se procurasse compensar o que a censura proibira, concentrava e explorava não só tudo o que saíra, mas as diversas versões dos diversos diários: O Século, República, A Capital, Diário Popular, Diário de Lisboa, Diário de Notícias. E títulos regionais, especialmente visados pelo lápis azul: Jornal do Fundão, Comércio do Funchal e Notícias da Amadora, este assaltado pela Pide, em 18 de Abril. De 1974, um ano com cronologia própria e singularíssima: em Fevereiro, Portugal e o Futuro, o livro de Spínola. Em Março, a “brigada do reumático”, as demissões de Costa Gomes e Spínola, o golpe das Caldas e o Encontro da Canção, o Coliseu cheio a cantar a Grândola e a chamar “fascistas!” aos censores das canções, ou seja, ao governo, ou seja, ao regime.

Sim, citando Leslie P. Hartley, “o passado é um país estrangeiro”. O nosso, é mesmo! 


O autor escreve com a ortografia antiga

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