Crimes em direto (ou a vitória das fake news)
Imagine que nas últimas eleições legislativas ou presidenciais portuguesas estávamos a assistir à emissão em direto de um canal de notícias e ouvíamos, depois de anunciados os resultados, um partidário do contendor que perdeu afirmar que é às Forças Armadas que cabe validar o escrutínio e decidir "se houve ou não fraude".
Boquiabertos - se calhar convém esclarecer já, por via das dúvidas, que em nenhum Estado de direito democrático cabe aos militares validar o resultado de eleições, e que preconizar essa validação é o mesmo que preconizar um golpe - mudávamos de canal, para darmos de caras com outro "comentador" da mesma fação, esse aliás apresentado como "coronel", a certificar que a maioria das armas existentes no país estavam nas mãos de pessoas dessa mesma fação (ou seja, fazendo literal contagem de espingardas), falando da possibilidade de guerra civil, para a seguir acusar o candidato vitorioso de ser ladrão e corrupto, associando-o também ao crime organizado.
Como qualificaríamos estas afirmações? Como exigiríamos que os jornalistas responsáveis pela emissão, pivôs em estúdio e editores, agissem?
Decerto não que permitissem a tais declarações passar sem correção e reação. Por uma questão básica de informação - recorde-se que é função dos jornalistas informar com rigor, o que inclui, num direto, e perante afirmações obviamente falsas, caluniosas e propiciadoras de violência, senão parar a emissão, pelo menos chamar a atenção para essa evidência -, mas também porque haveria a possibilidade de, ao não reagirem, permitirem e propiciarem um crime.
Crime, sim: o Código Penal português prevê, no seu artigo 330º, "incitamento à desobediência coletiva", prisão até dois anos para quem, "com intenção de destruir, alterar ou subverter pela violência o Estado de direito constitucionalmente estabelecido, incitar, em reunião pública ou por qualquer meio de comunicação com o público, à desobediência coletiva de leis de ordem pública", assim como para quem "publicamente ou por qualquer meio de comunicação com o público", "divulgar notícias falsas ou tendenciosas suscetíveis de provocar alarme ou inquietação na população", "provocar ou tentar provocar, pelos meios referidos na alínea anterior, divisões no seio das Forças Armadas, entre estas e as forças militarizadas ou de segurança, ou entre qualquer destas e os órgãos de soberania", ou "Incitar à luta política pela violência".
Como se constata, não foi preciso chegarmos à era daquilo a que se dá o nome de "fake news" para que a lei reconhecesse a gravidade das notícias falsas e tipificasse as tendentes a criar alarme na população como criminosas. O mesmo sucede noutros ordenamentos jurídicos, incluindo o dos EUA, no qual os pronunciamentos em causa são referidos por uma famosa frase, datada de 1919, de um juiz do Supremo Tribunal: "Falsely shouting fire in a theatre and causing a panic", e que pode ser traduzida como "causar pânico ao gritar fogo, sabendo não haver fogo, num teatro cheio".
Claro que é mais difícil de definir caso a caso o que não cabe debaixo do chapéu da liberdade de expressão/free speech, mas haverá poucas dúvidas, digo eu, sobre o facto de ser bastante incendiário afirmar, no contexto de uma eleição, que devem ser as Forças Armadas a decidir se um escrutínio vale ou não. Ou contabilizar as armas nas mãos de uma parte da população e falar de guerra civil. Mas foi o que sucedeu na noite de domingo na SIC-N e na CNN Portugal, a propósito das presidenciais no Brasil, pela boca, respetivamente, de um tal de Ricardo Amaral Pessoa, apresentado como apoiante de Bolsonaro (incrivelmente, outro indivíduo com o mesmo nome, também alinhado com o PR brasileiro, esteve no outro canal, sendo ao que parece pai e filho) e de um Fernando Montenegro, outro bolsonarista, esse identificado como "coronel". O primeiro chegou até a afirmar, face já ao anúncio dos resultados finais da eleição, que "Lula não vai tomar posse, isso é um devaneio", e que "o Supremo Tribunal Federal é corrupto".
Por menos que isso três canais de TV americanos - a NBC, a ABC e a MSNBC - cortaram a 5 de novembro de 2020, dois dias depois da eleições presidenciais nos EUA e quando ainda decorria a contagem dos votos, a emissão do discurso do próprio Donald Trump, por este se declarar vencedor e dizer que o seria "se só se contassem os votos legais", alegando a existência de fraude na contagem, que estavam a deitar fora os votos nele e que as pessoas estavam irritadas com isso e "a ficar violentas".
"Aqui estamos na situação bizarra de não apenas interromper o presidente dos EUA mas de corrigir o que está a dizer", comentou o pivô da MSNBC, enquanto a da ABC justificava: "Isto não é ser partisan, é dizer os factos".
Na altura, o então diretor de informação da TVI24 (hoje CNN Portugal), Anselmo Crespo, defendeu a ação dos três canais, considerando que é responsabilidade dos jornalistas efetuar mediação, verificação e, se necessário, correção, mesmo quando está em causa o discurso de um presidente; não me recordo de qual foi a posição de Ricardo Costa, ainda hoje diretor de informação da SIC (na CNN, o atual diretor de informação é Nuno Santos).
Certo é que, apesar de termos visto a 6 de janeiro de 2021, nas imagens terríveis do assalto ao Capitólio, o resultado de um discurso incendiário como o de Trump, parece que estes canais só se preocupam com desmontar, em rubricas tipo "Polígrafo", as "fake news" que aparecem nas redes sociais. Se aparecerem em direto da boca de convidados, como sucedeu este domingo, a atitude é de complacência e inação (quando não de entusiasmo nas régies perante as "bombas" que podem providenciar "polémica", audiências e cliques), deixando a outros convidados a tarefa de rebater, como se a mentira e a apologia do golpe e da violência fossem uma opinião como outra qualquer.
Se perante a terrível situação dos EUA e Brasil, dois países rachados ao meio e à beira do abismo, não aprendemos nada sobre a necessidade de combater as intoxicações mentirosas e golpistas e o papel fundamental do jornalismo nesse combate, se calhar é de mandar já a toalha. Quanto ao jornalismo e quanto à democracia - porque, sabemos, dependem um do outro.
NOTA: artigo alterado às 16.12 de 1 de novembro, para rectificar o nome da CNN Portugal em 2020 (então era TVI24) e para acrrescentar a identificação do atual diretor de informação da CNN Portugal, Nuno Santos.