Eu hoje estou cruel, frenético, exigente (Cesário Verde, Contrariedades) Lembro-me de ter lido um conto de Tchekov, que não consigo localizar, que descreve com mestria um estado de contrariedade difusa, que atravessa e domina um dia banal e rotineiro da vida de um médico. O génio de Tchekov faz com que o conto termine sem que saibamos ao certo o que tanto contraria o protagonista, mas fazendo-nos partilhar toda a insatisfação e contrariedade que atravessam o conto..A contrariedade mais comezinha pode trasmudar-se no nosso espírito nos mais altos pensamentos sobre as tragédias do mundo. Quando me sentei ao computador para escrever esta crónica, dei-me conta de uma avaria do meu Word, que o informático esclareceu, pelo telefone, resultar de ter expirado o meu contrato com a Microsoft, proprietária do Word, mas que só na segunda-feira poderíamos tratar e resolver..Comecei a escrever com a irritação difusa desta contrariedade e o texto que saía das minhas teclas era, mais uma vez, uma descrição apocalíptica e desesperada do estado do mundo. Até que me lembrei do conto de Tchekov e realizei que, por desanimadora que estivesse a situação do mundo (e está!), o que dominava o meu espírito ao escrever da desgraça universal era a comezinha contrariedade do problema do meu Word, que há anos me servia fielmente, e que vinha agora reclamar a sua soldada, como um lacaio rebelde numa peça de teatro clássica..Se o mundo está assustador, a verdade é que o que mais move o nosso espírito e os nossos sentimentos são estes incidentes ou acidentes próximos da nossa vida e das nossas necessidades..Mas esta contrariedade veio mostrar também a minha profunda dependência deste servo rebelde em que o meu computador se tornou. Cuidei de salvar (enviando-os por e-mail para lugar seguro) os rascunhos de três livros em gestação, cuja segurança deixara de estar garantida pelo saco amniótico do meu Word, barriga de aluguer tornada incerta e traiçoeira. E escrevo sem estar seguro de conseguir enviar (ou de que este criado vá entregar) o meu texto..A contrariedade é provocada por pequenas causas, indignas de um drama ou de uma tragédia. Ninguém diz que a morte da mãe ou o divórcio são contrariedades, estaria a trivializar os verdadeiros desgostos. E, no entanto, a contrariedade, por irrisório que seja o seu motivo, pode tomar conta do nosso espírito e induzir em nós um mau humor, que temos vergonha de atribuir à sua verdadeira causa..Cesário Verde, por exemplo, no seu poema, começa por se dizer “frenético e exigente”, reconhece que “o obstáculo estimula, torna-nos perversos”, acaba por reconhecer que o seu mau humor lhe veio “por causa dum jornal me rejeitar, há dias,/ um folhetim de versos” e conclui, depois de alguns impropérios em perfeitíssimos versos, dirigidos aos jornais, aos jornalistas e à vida literária (“Nas letras eu conheço um campo de manobras;/ Emprega-se a reclame, a intriga, o anúncio”), que, ao reconhecer as causas da sua contrariedade, pode por fim dizer “estou melhor, passou-me a cólera” e sentir satisfação pelo grande poema que escrevera..No conto de Tchekov (que cito de lembrança) nunca chega a definir-se a causa do mal-estar instalado no quotidiano rotineiro daquele médico. É a contrariedade sentida pelo protagonista que domina e atravessa o conto até ao fim, mas nunca Tchekov nos vem dar a chave dessa contrariedade, que continua difusa e indizível até acabarmos a leitura (se me estou a lembrar corretamente do conto)..É legítimo estar infeliz com os males da pátria e do mundo (que são muitos), mas causa riso estar-se infeliz com a disfuncionalidade do seu computador. Mais fácil seria afiar a pena ou carregar de tinta permanente a caneta, no tempo dos grandes, como Cesário ou Tchekov. Mas eu deixei-me escravizar por quem deveria ser meu escravo e só me resta esperar, com a ansiedade com que se espera uma consulta médica, a ajuda do técnico informático.