Contradição americana
Na segunda-feira, 7 de Outubro, na apresentação do número 8 da revista Crítica XXI, debati com o Rui Ramos e o Miguel Morgado as eleições americanas de 5 de Novembro. Houve quem me dissesse que, assim, não haveria contraditório. Tive de responder que o contraditório estava no espaço público português, e era de 95, para não dizer de 99%. Na observação talvez estivesse também implícita a ideia de que “a direita” era toda ela um bloco, sem divergências nem nuances, e que, por isso, pouco ou nada haveria ali a debater…
É que sobre as eleições americanas, como sobre quase tudo, a narrativa dominante tende agora a seguir o modelo das antigas coboiadas de Hollywood: há bons e maus absolutos; bons muito bons e maus muito maus e espera-se que os bons muito bons ganhem no fim e que os maus muito maus funcionem como um homogéneo bloco maléfico.
Nesta narrativa há, na América, um mau muito mau, bilionário e apoiado por bilionários, que, se eleito, vai abandonar a Europa aos russos e o mundo aos chineses, acicatar as alterações climáticas e acabar com a democracia na América. Mas eis que aparece uma dupla heroica, constituída por uma mulher maravilha de classe média e um homem também maravilhoso e também de classe média. E o que faz o mau muito mau? Chama, para o secundar, um mau ainda pior porque munido de duas insidiosas e enganadoras armas: instrução e articulação. Mas nada há a temer porque há sondagens a prever, ou mesmo a garantir, um final feliz para o último duelo ao pôr do sol.
A história real tem, evidentemente, pouco que ver com isto. Trump tomou conta dos Republicanos porque a popularidade que tinha nas bases o impôs às elites do Partido; hoje, entre os Republicanos, mandam as bases e as elites seguem. É populismo? Será. Para o bem e para o mal.
Ao contrário, entre os Democratas manda uma elite restrita e nem sempre visível. A mesma elite que, depois do debate, descobriu a debilidade mental de Biden e o despediu. Biden não gostou de ser despedido e impôs Harris – que a máquina de propaganda logo transformou na heroína capaz de vencer o mau da fita e os seus lacaios.
Entre os dois candidatos e os dois campos há uma guerra encarniçada quanto a valores – de religião, de família, de identidade; mas, estranhamente nos programas económicos e sociais mal se distinguem: são protecionistas, são pela reindustrialização, são pelo buy american, pela segurança social, pelo Medicare e pela protecção aos trabalhadores e aos velhos. Os Republicanos já não acreditam na “mão invisível” e os Democratas perderam a classe operária.
Li muito da América – do Último Moycano ao Great Gatsby, de Harlot’s Ghost a American Pastoral – e sobre a América – de Hamilton a Tocqueville e a Gore Vidal – e penso sempre na sua singularidade; a singularidade de uma nação que teve na sua fundações dois “espíritos” aparentemente contraditórios: a Bíblia do Rei Jaime e o Iluminismo setecentista; uma mística de povo escolhido, de cidade sobre a colina, e a razão teórica e prática dos ilustrados e dos robber barons.
Um povo que soube conviver desde o princípio e nos princípios com estas contradições, há de saber viver e sobreviver a outras. Até às do 5 de Novembro e às do dia seguinte. E longe dos maniqueísmos de conveniência e das mediáticas coboiadas ainda vamos ter muito que debater.