Contra os canhões
É a guerra aquele monstro
que se sustenta das fazendas,
do sangue, das vidas,
e quanto mais come e consome,
tanto menos se farta.
Padre António Vieira, 1668
Aguerra foi sempre o modo de os sistemas financeiros e políticos resolverem as tensões que são incapazes de superar. Os historiadores do futuro espantam-se depois com o clima anterior às guerras, com a dominação dos espíritos pelas ideias belicistas, e por vezes chamam “sonâmbulos” aos agentes políticos das épocas que estudam. A verdade é que, descontando os incontornáveis aspetos pessoais das decisões políticas, geralmente as guerras decorrem de uma engrenagem a que ninguém consegue pôr travões, porque se tornou numa necessidade incontornável do sistema.
As guerras resultam também de guerras passadas, que geram rancores duradouros. A paz humilhante para os vencidos que se seguiu à Primeira Guerra Mundial foi fruto em grande parte do desejo de vingança dos franceses em relação à guerra de 1870 e consequente perda da Alsácia-Lorena; e essa paz humilhante de Versalhes foi por sua vez um fator determinante da eclosão da Segunda Guerra, a que Hitler arrastou a Europa e o mundo, seguido dos oportunistas da Itália e do Japão; é assim que, do mesmo modo, a humilhação, real ou imaginada, sentida pela Rússia após o fim do seu império desencadeou a ilegítima agressão contra a Ucrânia, e é de um breve intervalo entre guerras que parece estarmos agora a sair.
As inversões de alianças não são novidade, mas geralmente processam-se no fim das guerras, quando aliados fracos mudam de campo para se juntarem aos vencedores. A inversão de alianças a que assistimos hoje, com os Estados Unidos a voltarem-se para o lado da Rússia, tem lugar, pelo contrário, ainda nos prolegómenos da guerra e não sabemos já o que irá acontecer: se uma paz russo-americana imposta à Ucrânia e à Europa, se uma guerra inviável de uma fraca Europa, sem o escudo americano, contra uma mais forte Rússia, que pode não ter melhor PIB, mas tem mais e melhores armas.
Em 2007, quando cheguei à Índia como embaixador, disse a um colega indiano que a Alemanha era a potência dominante na Europa, porque detinha as chaves da economia. O colega riu-se e emendou-me: “Só há duas verdadeiras potências na Europa, a França e o Reino Unido. E porquê? Porque são os únicos que têm armas nucleares.”
O mundo em que vivemos hoje fez-nos sair da bolha em que vivíamos na Europa e fez-nos enfrentar a penosa realidade de vivermos num mundo dominado pelas relações de força, pelas armas e não pelo comércio. Só nos resta esperar que, num mundo dominado pela força e não pelo direito, saibamos ser realistas e não aventureiros e possamos compreender que a defesa dos nossos valores e dos nossos princípios se fará essencialmente dentro dos nossos países e no interior da nossa Europa.
Diplomata e escritor