Contra o cansaço da democracia
Diante dos poderes, visíveis e menos visíveis, que limitam e constrangem as nossas liberdades, chegámos a um estranho momento de paralisia catatónica da parte daqueles de quem esperávamos a luta e não a perplexidade, a afirmação assertiva e não a dúvida, daqueles de quem esperávamos e esperamos a luta pela liberdade e pela dignidade.
Não pretendo com este fraseado diminuir a política, a necessária discussão entre princípios e valores opostos, sem a qual não há democracia, há só um caldo morno de aceitação e passividade. Apenas quero chamar a atenção para a conspiração mundial contra a democracia, que nos cerca e condiciona, fora da nossa vontade e infelizmente muitas vezes longe da nossa consciência.
Olhar para o que se passa nos Estados Unidos mostra-nos, em toda a sua desumanidade, o mundo que está a ser preparado para nós, e sobretudo para os nossos filhos e os nossos netos, irem viver. Ora os poderes políticos das ameaçadas democracias que ainda restam cuidam de outros assuntos, como se nada se passasse. Cuidam da guerra, como se a única ameaça viesse dos autocratas russos, com tantos aspirantes a autocratas a desabrochar nos nossos países. Cuidam da finança, assumindo que a economia serve só para enriquecer os ricos e que, não havendo tal coisa como uma sociedade, estamos todos dispensados de cuidar do bem comum. Cuidam de fechar as portas aos migrantes, que vão servir de bode expiatório para o inevitável descontentamento dos povos. E esse descontentamento generalizado com a globalização vai transformar-se num cansaço da democracia e numa rejeição do cosmopolitismo, que serve só os interesses dos regentes e dos possidentes, dos autocratas e dos oligarcas, a oriente e a ocidente.
Comecei a escrever este artigo, que se tornou digressão, partindo de uma outra problemática, mais próxima e mais conhecida, mas sem saber bem o que dizer. Estou descontente com a nossa situação política, mas bem pior seria um mundo em que desaparecessem as crises políticas. E nós, na nossa idade, temos memória de um tal mundo. Continuando a pensar, entendi que o que mais me afligia e metia medo não eram os riscos e os perigos da nossa flutuação política doméstica, era sim o perfil e o anúncio do “admirável mundo novo” nascido com Trump. Porque aos fascismos conhecidos soubemos dar luta. Mas estas novas formas de brutal autoritarismo e condicionamento extremo dos seres humanos são formas novas da velha peste castanha do tempo dos nossos avós.
As mudanças, vendo bem, são mais tecnológicas do que de conteúdo. É mais simples reprimir um dissidente tirando-lhe pontos da sua caderneta digital de cidadão, como se faz na China, do que com os velhos métodos de dar a beber óleo de rícino, como os fascistas italianos, ou provocar quedas de andares muito altos, como os fascistas russos. Os safanões dados a tempo têm hoje tecnologias mais refinadas e, para casos extremos, há sempre mortes casuais e imprevistas. O nacionalismo conservador e beato persiste na Rússia, que é a mais antiquada das autocracias, mas a China e os Estados Unidos procuram novos meios de submeter os seres humanos à tirania. E continua a haver muitos candidatos à servidão voluntária...
E se parássemos um pouco para pensar?