Confiança, até sob a forma de moção
Na semana passada procurei dar conta, neste espaço, das regras que foram aprovadas nos últimos seis anos sobre transparência, incompatibilidades e prevenção de conflitos de interesses de titulares de cargos políticos. São regras limitativas do exercício destes cargos por quem tenha uma atividade empresarial prévia e que seguramente afastam pessoas. O facto de, por exemplo, um acionista ou sócio de uma empresa, pelo facto de ser titular de um cargo político ou de um alto cargo público, ver imediatamente a sua empresa ou sociedade profissional, ou da sua família, impedida de celebrar contratos com qualquer entidade pública é provavelmente uma das maiores limitações, independentemente da sua bondade e justificação, obviamente mais sentida numas áreas do que noutras. Esta questão não é exótica nem sequer descoberta a propósito do atual primeiro-ministro. Membros de outros governos e seus familiares sentiram-na na pele, por exemplo a propósito de sérias limitações à continuidade de funções profissionais por parte dos seus cônjuges, pelo facto de o marido ou a mulher estar ministro ou secretário de Estado durante algum tempo. Obviamente ninguém é obrigado a candidatar-se ou a aceitar qualquer cargo político e estas são as regras do jogo. Mas deve reconhecer-se que um primeiro-ministro, enquanto responsável máximo pelo Governo e pela totalidade da Administração Pública e pelo setor empresarial do Estado, está numa situação de permanente risco de conflito, especialmente se já tiver antes trabalhado na vida e não ter sido apenas deputado ou autarca por uma unção tribal continuada ou algo assim.
Esse texto não era uma defesa da situação em que se encontra o atual primeiro-ministro, como alguns me manifestaram, com alegada surpresa. Era, sim, uma tentativa de, por um lado, mostrar o quadro em que se está no domínio da lei atual e, outros, por exclusão, em que já se está no domínio das percepções, da reputação, da discussão e apreciação política e da eventual consciência, seriedade e bom senso das pessoas, ou da efetiva prática de crimes. Por outro lado, era também um micro manifesto contra a sonsice, essa magnífica característica nacional, que se acende e refulge, aqui e ali, ao sabor dos temas, acolitada pela tentação de voyeurismo e pela pequena inveja que, entre nós, nunca mingua. Se os portugueses e o parlamento querem outras regras, eventualmente mais rigorosas, é uma questão de as aprovarem. Não houve grande probidade legiferante anterior neste tema, aliás, já que, desde 31 de julho de 2019, a recente Lei n.º 52/2019, o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, já teve seis – versões – seis, como os touros.
Entretanto, Luís Montenegro veio dizer mais umas coisas, há uma nova moção de censura e assim estamos. Na verdade, perante este avolumar de críticas de vários agentes políticos com presença no parlamento, entre inquéritos da ordem dos Advogados e do Ministério Público, assentes numa questão que é a basal, a da imunidade a interesses particulares pagos em dinheiro, o que o Governo deveria fazer era apresentar uma moção de confiança e não apenas ameaçá-la em nota de rodapé. Sendo rejeitada, haveria lugar a um novo Governo, com os mesmos ou outros participantes. Aliás, todas as moções de confiança em Portugal apresentadas pelos Governos, e aprovadas pelo parlamento (apenas uma foi rejeitada, já em 1977), foram-no por Governos integrados pelo PSD, a última das quais em 2013. Está bem acompanhado Luís Montenegro, nesse tema, no seu partido, o único que assume uma tradição de ter primeiros-ministros empresários e gestores. A clareza e a transparência não podem ser apenas palavras ou estados de alma: há mecanismos constitucionais para as tornar muito reais – tremendamente reais. Como escreveu há mais de dois séculos Jeremy Bentham, “sem publicidade, não há bem que sempre dure; com publicidade, não há mal que nunca acabe”.