Comboios, Estado e direitos humanos
Na semana passada um tribunal português atribuiu uma indemnização recorde - um milhão e 600 mil euros - a Joana Reais que, aos 22 anos, em 2008, caiu ao tentar entrar num comboio da CP em Santa Apolónia e, em resultado, perdeu uma perna. A decisão, do Tribunal Administrativo de Lisboa, é passível de recurso - trata-se da primeira instância judicial, num processo iniciado em 2011 -, pelo que Joana terá de esperar mais uns anos pelo fim daquilo a que chama "este capítulo da minha vida que não consigo encerrar".
Entretanto, como desde o dia do acidente, Joana continuará sem receber um cêntimo da CP.
Apesar de esta empresa ter garantido ao DN haver muitas situações em que indemniza as vítimas por acordo, o certo é que em vários casos, relativos a ferimentos graves e a mortes, que chegaram aos tribunais, e nos quais a empresa foi considerada (como sucedeu no de Joana) a única responsável, a sua posição é sempre a de culpar as vítimas e arrastar os processos na justiça.
Foi assim por exemplo no processo de uma setubalense de 18 anos que a 30 de dezembro de 2009, ao tentar desembarcar, com a bagagem, na estação de Tunes, foi surpreendida pelo arranque do comboio e caiu à linha, sendo atropelada e ficando sem parte da perna direita. Apesar de a empresa atribuir toda a culpa à jovem, o Tribunal Judicial de Faro deu como provado, em sentença de 5 de dezembro de 2016, que o comboio se tinha posto em marcha com as portas abertas e sem qualquer sinal sonoro de aviso, quando não só a vítima como várias outras pessoas se preparavam ainda para desembarcar. Condenou assim a empresa e maquinista (este numa percentagem de 7%), a pagar cerca de 187 mil euros a título de danos patrimoniais e não patrimoniais e todos os danos patrimoniais futuros, incluindo todas as despesas médicas atinentes à lesão.
Igual postura de responsabilização exclusiva da vítima foi adotada pela CP quanto ao acidente sofrido por uma mulher que em agosto de 2007 caiu ao tentar entrar, na Estação do Oriente, num comboio que arrancara de portas abertas, acabando por ser atropelada e sofrendo esmagamento de um pé. O caso chegou ao Supremo Tribunal Administrativo em 2019, sendo por este devolvido à primeira instância (não se conhece o desenvolvimento).
E a mesmíssima atitude tem a CP no caso de Alcenira Oliveira, cidadã brasileira que a 4 de dezembro de 2013, estando de férias em Portugal, sofreu um acidente muito semelhante ao da jovem de Setúbal: caiu quando, ao desembarcar com a bagagem de um comboio na estação de Sete Rios, este se pôs em movimento.
Alcenira, hoje com 58 anos, ficou sem as duas pernas e tem como meio de subsistência uma muito baixa pensão por invalidez, de cerca de 170 euros mensais, outorgada pelo Estado brasileiro.
O revisor do comboio foi condenado em maio, no Tribunal Criminal de Lisboa, por ofensas à integridade física por negligência grave (considerou-se provado que dera sinal de partida ao maquinista sem verificar se ainda estava alguém a subir ou descer), mas o pedido de indemnização à CP corre em separado e nem tem ainda audiência marcada. Angustiado com a situação da sua constituinte, o advogado decidiu requerer à Comissão de Proteção às Vítimas de Crime uma antecipação da indemnização, mas não houve até agora resposta.
O desespero de Alcenira não seria tão grande se o regulamento europeu de 2007 sobre direitos e obrigações dos passageiros de transporte ferroviário, em vigor desde 2009, estivesse a ser totalmente aplicado em Portugal.
É que este obriga a que, "em caso de ferimento ou morte ocorrido no âmbito de viagem ferroviária" a empresa responsável efetue "pagamentos adiantados" que permitam à vítima, ou a quem, se esta morreu, seja herdeiro, "fazer face a necessidades económicas imediatas, numa base proporcional ao dano sofrido." Em caso de morte, o adiantamento não pode ser inferior a 21 mil euros.
O pagamento, não reembolsável exceto se se provar que a responsabilidade pelo acidente foi do passageiro, não significa, frisa-se, "reconhecimento da responsabilidade", e poderá "ser deduzido dos montantes pagos posteriormente [de uma eventual indemnização]".
A mesma norma surge no novo regulamento aprovado pelo Conselho da União Europeia em 2021, que entrará em vigor em 2023, e que, considerando terem existido "consideráveis progressos", vê como necessário "melhorar a defesa dos direitos dos passageiros dos serviços ferroviários", por serem "a parte mais fraca no contrato de transporte".
Assim, este novo regulamento volta como o anterior a frisar "a conveniência de libertar as vítimas de acidentes e as pessoas que delas dependem de preocupações financeiras de curto prazo no período imediatamente a seguir a um acidente", insistindo na obrigação de "pagamentos adiantados".
Porém Portugal achou que não, não é nada conveniente. Fazendo uso da prerrogativa, permitida pelo regulamento, de que os países pedissem "isenções" em relação a determinadas regras, pediu a isenção em relação aos pagamentos adiantados.
Como a isenção podia ser solicitada sem limite no caso dos serviços urbanos, suburbanos e regionais e até dezembro de 2024 no dos serviços domésticos de longo curso, foi essa a opção dos sucessivos governos: adiar o mais possível esta garantia, deixando os acidentados e suas famílias na situação, precisamente, que o regulamento visava evitar.
Com a agravante de instituir uma desigualdade injustificável entre passageiros: como a isenção não se aplica aos passageiros dos serviços ferroviários internacionais, se ocorrer, em território nacional, um acidente entre um comboio regional e outro internacional, os do primeiro não terão direito a "pagamento adiantado", os do segundo sim.
Vá lá que o novo regulamento vem limitar o prazo das isenções em determinadas matérias, sendo a da responsabilidade das empresas para com os passageiros (na vertente indemnizatória) uma delas.
Outra é a da obrigação de as ferroviárias "tomarem as medidas adequadas para garantir a segurança pessoal dos passageiros nas estações ferroviárias e nos comboios".
Pode ser que assim se faça finalmente alguma coisa para certificar que as portas das composições em circulação no país possuem, como recomenda o Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes Ferroviários num relatório de janeiro (repetindo uma recomendação de 2016), "sistemas tecnológicos apropriados" para "apenas serem desbloqueadas por ação da tripulação" e para impedir que os comboios possam entrar em movimento de portas abertas.
Tais sistemas, que de acordo com o relatório citado foram instalados noutros países em comboios da mesma geração "e até mais antigos", teriam evitado todos os acidentes descritos neste artigo, mais todas as 36 (incluindo a de Alcenira) quedas a entrar ou sair de comboios em movimento, resultando em ferimentos, que o gabinete contabiliza de 2010 a 2020.
Acresce que o novo regulamento europeu quer isenções "ainda mais reduzidas" no caso dos serviços regionais, porque "estão mais integrados no resto do sistema ferroviário da União e as viagens em causa são mais longas".
Há pois alguma esperança de que a iniquidade escolhida pelos governos nacionais, em absoluto desprezo pelos direitos humanos e em defesa da tesouraria das empresas ferroviárias, esteja prestes a terminar.