Cinema, futebol & etc.

Que ficou da passagem da curta-metragem Ice Merchants, de João Gonzalez, pela 95ª edição dos Óscares de Hollywood? É uma pergunta, entenda-se, totalmente exterior às qualidades do filme que, escuso de estar a repeti-lo, considero um belíssimo objeto de cinema e um caso invulgar de imaginação audiovisual.

Que ficou, então? Sobretudo a ideia muito básica, mas essencial, de que faz sentido pensar a existência artística e financeira do cinema em Portugal através das mais diversas formas de relação com o mercado global. Sem esquecer que ficou também um saldo perverso que me desconcerta. Dir-se-ia que é preciso ter a chancela dos Óscares para que a riqueza interior do cinema português faça multiplicar manchetes e comunicados dos políticos... Para mais, neste caso, com o estranho desaparecimento em combate das tradicionais vozes antiamericanas que, além de promoverem o desconhecimento da fascinante pluralidade de Hollywood, são especialistas, ano após ano, na demonização dos Óscares.

O contraponto deste silêncio ensurdecedor é o silêncio real que continua a abater-se sobre outros fenómenos do cinema português. Observe-se o caso de Pacifiction: a realização do espanhol Albert Serra é, na verdade, um dos exemplos recentes de maior e mais significativo impacto da produção portuguesa no mercado internacional - através da empresa Rosa Filmes, de Joaquim Sapinho, como coprodutora. E creio que também não preciso de repetir que o filme me parece um exercício esteticamente pretensioso e tematicamente gratuito, a não ser para recordar que pensar o cinema não é um ato dirigista: a noção de que o "crítico" é aquele que espera que os mercados ecoem os seus pontos de vista não passa de uma forma de inanidade cultural, isto é, de menosprezo pela especificidade do trabalho crítico.

Neste contexto, pergunto: que vai acontecer com Great Yarmouth - Provisional Figures, o filme de Marco Martins (estreado na quinta-feira) sobre um grupo de imigrantes portugueses na região de Norfolk, Inglaterra? A pergunta não procura qualquer espécie de triunfalismo ("quantos prémios já ganhou ou pode ganhar?"), nem visa alimentar proezas estatísticas ("quantos espectadores no primeiro fim de semana?"). É apenas uma pergunta de caráter crítico. A saber: que nos é mostrado, e como nos é mostrado, no filme? Ou ainda: que desejo de cinema o faz mover?

O ambiente não é propício a que pensemos para lá de lugares-comuns profundamente enraizados no tecido social ou mediático (o que, convenhamos, vai dar ao mesmo, já que deixámos de saber socializar, a não ser através de apêndices mediáticos). Vivemos a felicidade de um pueril torpor cultural: quase ninguém arrisca a coragem rudimentar de reconhecer que a cultura dominante na sociedade portuguesa é o futebol. Curiosamente, na mesma semana em que Ice Merchants era notícia a partir de Los Angeles, António Costa celebrava a participação de Portugal na candidatura ao Mundial de Futebol de 2030 como "uma mensagem muito importante para o mundo" - sempre tão atentas a erros ou contradições que apontam nos discursos do primeiro-ministro, as forças de direita e de esquerda não comentaram o projeto.

Acontece que Great Yarmouth - Provisional Figures se demarca, ponto por ponto, de outro poderoso discurso cultural que leva a considerar que o efeito de real mais "transparente" (e, nessa medida, inquestionável) está nos dispositivos televisivos que se dizem realistas - incluindo o repórter a encher o ecrã com uma paisagem em ruínas a legitimar o seu dizer e, claro, a obscenidade do Big Brother que, há mais de 20 anos, se promove como janela indiscreta (peço desculpa pelo trocadilho cinéfilo...) para "a vida como ela é".

"O novo filme de Marco Martins convoca-nos para aquilo que é, ou pode ser, um realismo genuinamente cinematográfico."

Aliás, nas páginas de quinta-feira do DN sobre as estreias de cinema, a minha referência ao realismo britânico como modelo simbólico de Great Yarmouth - Provisional Figures pode atrair um equívoco que importa dissipar. Assim, não há "um" realismo, mas sim uma multiplicidade de registos e narrativas que se desenvolvem em nome de alguma vontade realista. Lembremos apenas a herança de um cineasta que, como poucos, pensou estas questões: o realismo que Roberto Rosselini desenvolve em Viagem a Itália (1954) está longe de ser uma mera duplicação das matrizes que distinguem o seu Roma, Cidade Aberta (1945).

O realismo de Marco Martins enraíza-se numa paixão radical pelos atores - o labor do elenco de Great Yarmouth - Provisional Figures, liderado por Beatriz Batarda, é a expressão cristalina dessa paixão. A sua vibração não pode ser desligada da obsessiva encenação (realista, precisamente) de todas as matérias, da crueza do sangue às rugas dos rostos, neste caso através da prodigiosa direção fotográfica de João Ribeiro.

Se tivermos alguma disponibilidade mental, saberemos reconhecer que o filme de Marco Martins não é um caso isolado na história recente do cinema português. Somos, assim, convocados para olhar o mundo como um vulcão de gente e objetos que resistem à formatação (figurativa e ideológica) das culturas dominantes - como crítico de cinema, atrevo-me mesmo a pensar que a diversificação social dos nossos olhares é mais importante do que organizar um Mundial de Futebol.

Jornalista

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