Cimeira da Nato. O projecto europeu à deriva

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Não sei o que foi mais penoso ver em Haia. Se a falta de afirmação da União Europeia, ou a gabarolice de Donald Trump.

Na verdade o mundo está a ficar, gradualmente, um lugar cada vez mais perigoso e imprevisível. As consequências da reeleição de Donald Trump para a União Europeia, depois da componente económica com o aumento de tarifas, chegaram agora à vertente bélica com a obrigatoriedade de todos os países da União Europeia subirem a sua participação nas despesas de Defesa da NATO no valor de 5% do PIB até 2035.

É uma Europa democrática, com valores de liberdade e respeito pelo Direito Internacional que vimos em Haia submissa a um Donald Trump, fanfarrão, gabarola, que levou para a cimeira um alegado cessar-fogo entre Israel e o Irão, do qual todos conhecem a fragilidade, e que de início não foi respeitado por Israel até ao puxão de orelhas a Netanyahu. Uma falsa vitória de Trump apresentada na cimeira como um projecto de paz e usada como argumento para empurrar os líderes dos países europeus a assinarem um acordo de 5% do PIB.

Tudo isto sem qualquer garantia de uma futura actuação da NATO consistente e de acordo com o Direito Internacional. O respeito e a aplicabilidade do artigo 5º foi uma constante incógnita nas afirmações de Trump. Ninguém sabe o que acontecerá se amanhã a Rússia resolver invadir os países Bálticos ou a Finlândia. Funcionará o artigo 5º ou o conluio da estranha amizade de Trump com Putin congelará uma eventual aplicação desse mesmo artigo?

Não saíram certezas da Cimeira de Haia no que respeita à afirmação da União Europeia no contexto mundial. A sua independência e afirmação estratégica esfumaram-se. Trump fez a sua festa, apoiado no poder que lhe dão os 64 % que os Estados Unidos suportam do orçamento da NATO. A cimeira foi uma espécie de uma feira onde Trump resolveu apresentar o escaparate das melhores armas que os Estados Unidos têm para vender à Europa.

“Temos as melhores armas do mundo”, não se coibiu de afirmar Trump na conferência de imprensa final. A indústria do armamento europeu, os aviões Dassault Rafale franceses ou os Saab JAS 39 Gripen logo se vê o destino deles. A NATO vai ter de comprar os F-35 e ponto final no assunto.

O tratamento que Trump deu à Ucrânia na Cimeira , um assunto sensível europeu, foi uma ofensa a todos os líderes da União Europeia presentes. Um encontro furtivo de Trump com Zelensky à 25.ª hora, com uma vaga promessa de fornecimento (talvez) de mísseis de defesa Patriot e um compromisso de um telefonema a Putin. Pobre Ucrânia, pobre povo que quer ser livre e encontra nos líderes europeus silêncio, cobardia e vagas promessas de apoio. Todos pouco afirmativos e a assobiarem para o ar sobre a questão ucraniana, um assunto eminentemente europeu. Tudo porque Trump tem com Putin conivências não explicáveis à luz da uma estratégia democrática e alinhada com os que deveriam ser os seus parceiros Ocidentais.

A boçalidade de Trump teve o seu expoente máximo nas ameaças que fez a Espanha, que recusou comprometer-se com a meta dos 5%, aceitando apenas o compromisso de 2,1% para este ano. Pois bem, Sánchez que se cuide porque Trump vai tratar, ele próprio, do assunto e obrigar o primeiro-ministro espanhol a pagar o dobro do valor que deveria pagar à NATO. A ferramenta comercial que Trump tanto gosta vai entrar em serviço para vergar a Espanha.

De Gaza nem uma palavra. A questão dos Direitos Humanos de um povo é coisa pouco interessante para Trump e a cobardia europeia não toca no assunto para não incomodar o mais imprevisível representante do Tio Sam. Nesta cimeira Trump quis surgir como o homem da paz, mas toda a narrativa da cimeira vai no sentido da guerra.

As suas constantes afirmações de sucesso do bombardeamento às instalações nucleares iranianas são desmentidas por uma análise dos serviços secretos norte-americanos publicada no New York Times e na CNN, que referem que o programa nuclear iraniano apenas sofreu atraso de alguns meses. Fake news, é claro! Que outra coisa poderia Donald Trump dizer sobre notícias que vão contra a sua narrativa?

Nesta cimeira fica pois a ideia que os países vão ter de pagar mais para uma organização de defesa que, não se sabe bem, onde vai gastar esse dinheiro, se algum dia ele vier a entrar nos cofres da NATO como ficou expresso.

Nesta cacofonia, nesta gabarolice Trumpista, nesta inexistência de líderes europeus com qualidade, estadistas com projectos de afirmação de política europeia que tão necessários seriam, fica na boca o sabor amargo de uns Estados Unidos sem rumo e horizonte a lançarem incerteza na União Europeia, no mundo ocidental e nos seus valores.

Jornalista

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

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