Chegaram os jacarandás em flor
Chegaram os jacarandás em flor. A instabilidade meteorológica determina a existência de flores tímidas, mas em breve teremos o que desejamos, a cidade pintada de lilás, com a espécie vinda do Brasil, que Félix de Avelar Brotero espalhou na cidade de Lisboa, a partir do Jardim Botânico da Ajuda, que o botânico dirigiu na primeira década do século XIX.
Por estes dias, Pedro Canavarro lançou um pequeno livro de poemas, na magnífica casa das Portas do Sol em Santarém, de tantas recordações. O Infinito à Cabeceira é um retrato fiel de alguém que tem feito da cultura e dos seus mistérios a sua vida. O património cultural, para ele, não é uma realidade do passado, mas a vida autêntica, num encontro permanente entre quantos constroem a história humana .Como diz o Padre Adelino Ascenso: “O Pedro galgou distâncias, montes e planícies, ‘de continente em continente’, pois a única coisa que fez foi viver, agora viaja no seu quarto, pelas paredes e ‘pinturas espalhadas pelo chão’, pelos objetos e pelas fotos que são portos de abrigo, consciente de que é preciso saber viajar…” A viagem no quarto é a que Garrett evoca no início de Viagens na Minha Terra – “Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até ao jardim”. E por isso foi no jardim que tudo se passou, depois de termos ouvido o sino, abrindo a sua função. “Ouvir soar as Avé-Marias/dos sinos da minha cidade/é tudo recordar e amar”. O ambiente humano reuniu tudo o necessário. Naquele fim de tarde, ali estavam todos, vidas e memórias. “Na cadeira ‘capitonê’ de dois braços/o avô esperava por mim/A salamandra estava apagada/sobreposta, a estampa no coração aberto de Jesus/Era clássico beijá-lo antes de deitar,/alegrava-se com a aprendizagem do meu inglês…” Ainda hoje, os olhos de Pedro sentem essa alegria. “Viajar no meu quarto é belo/dele saio e entro/na liberdade de ler/tudo posso olhar/tudo posso querer e sonhar/só não posso dele fugir”… É preciso saber viajar, e o que Pedro sempre fez foi ensinar e aprender a viajar. Que é a cultura senão a compreensão dessa constante peregrinação interior? “Olho da minha varanda/tudo vejo/Só não encontro o Infinito/Onde estão os meus pais?”. Essa é a dimensão da memória que nos vai acolhendo sempre. E sempre a mesma pergunta que se repete. Como nos podemos reencontrar?
“Tudo se passou/há tanto, tanto tempo…/e vivi esse tempo todo/como se fosse o meu tempo./Hoje, neste novo tempo/ainda sou eu, já sem tempo,/quando ainda olho o tempo,/como se ainda fosse meu”. E olhamos em volta, e ali estão os verdadeiros heróis deste lugar e deste tempo – Almeida Garrett e Passos Manuel. “Plantada de laranjeiras antigas, os muros forrados de limoeiros e parreiras, aquela pequena cerca, apesar dos muitos canteiros e alegretes de alvenaria com que está moirescamente entulhada, é amena e graciosa à vista”. É a voz de Garrett, ali connosco. E vem a memória antiga, e a lembrança das conversas, do chá, da política, da literatura, de Santarém e do sono regalado do poeta, que acordou ao repicar incessante e apressurado dos sinos da Alcáçova. O resto conhecemos de cor e para quem não lembra, corra a ler e a gozar o prazer máximo da melhor palavra. Quando ali estamos, sentimos esse reviver.
Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian