Chapéus de jóquei

Junte sete gemas de ovo e cinco colheres de açúcar, à mistura com meia colher (de sopa) de farinha de trigo, outra meia de manteiga. Leve ao fogo médio até obter uma massa firme, adicione meia colher de essência de baunilha e coloque a massa numa travessa levemente untada com manteiga. Quando tudo estiver frio, e com a ajuda de uma colher de chá, faça bolinhas pequenas, do tamanho de berlindes. Depois, cubra as bolinhas com calda de caramelo quente e puxe a pala do "chapéu" com uma colher de chá. Correndo bem, o resultado serão umas esferas dulcíssimas, cobertas de caramelo, com um rebordo na base. Na imaginação do poeta, parecem os chapeuzinhos dos jóqueis das corridas de cavalos.

Muito criança, Vina inventou esta receita ingénua, pueril, tão simples quanto gulosa: apanhava os ovos frescos no quintal de casa dos pais ou na quinta dos avós, dava a clara aos irmãos mais velhos, Helius e Laetitia, guardava para si a gema e com ela fazia os seus "chapéus de jóquei". Era então "menino de ilha", da ilha do Governador, nas cercanias do Rio, e, muitos anos depois, lembraria essa infância dourada, as noites de calor em que se escapulia da cama, na casa paterna, para se ir deitar à beira-mar, ouvindo o sussurro doce da maré montante e os gorgulhos dos peixes que saltavam nas águas, observando as estrelas altas lá no céu escuríssimo, sentindo a brisa fresca das madrugadas silentes. "Era indizivelmente bom", recordou.

Na cozinha, Vina tinha incrível destreza para despejar o fio dourado do caramelo quente sobre as bolinhas amarelas de ovo e manteiga e para o toque final, puxando suavemente a calda, de modo a desenhar a pala de um boné de jóquei. Se era grande a habilidade manual, maior ainda o dote onomástico, o dom inato para manejar e brincar com as palavras desde criança, o talento único, quase divino, para observar as coisas e nesse mesmo instante baptizá-las com um nome novo, prenhe de graça. Agora, quando olhamos as bolinhas na fotografia, parecem mesmo chapeuzinhos de jóquei: porque é que não nos lembrámos nós disso? Porque, para o mal e para o bem, nós não somos Vinicius de Mello Moraes, um dos maiores génios da língua portuguesa que o século XX produziu.

Um livro saído em 2014, e há pouco reeditado, recolhe o produto do seu amor culinário, uma paixão de décadas, plasmada pelos cantos do mundo por onde andou, Américas do norte e do sul, França e Itália, Portugal incluído (numa turné em Lisboa, nos anos 1970, decidiu experimentar pela primeira vez caviar). Pois sou um bom cozinheiro - Receitas, histórias e sabores da vida de Vinicius de Moraes, da Companhia das Letras, fala dos chapeuzinhos de jóquei e dos muitos pratos do poeta. O título, "Pois sou um bom cozinheiro", é extraído de um poema seu, Auto-retrato, e Vinicius não era apenas um excelente garfo, mas também um chef empenhado e aplicado, que unia a culinária às artes amatórias, como disse no inesquecível Para viver um grande amor: "Pois do que o grande amor quer saber mesmo é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor... Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, strogonoffs - comidinhas para depois do amor. E o que há de melhor que ir pra cozinha e preparar com amor uma galinha com uma rica, e gostosa, farofinha, para o seu grande amor?"

A primeira receita, inventada aos 7 anos, foram os chapeuzinhos de jóquei, numa infância povoada de sabores, desde a "carne assada da Vovó Neném" ao cozido generoso do seu pai (e à sopa de cozido do dia seguinte...), passando por mil pudins (pudim de pão do vovô, pudim paulista, pudim de laranja, pudim de passas), manjares mineiros, amarelinhas, quindins, cucas de banana, baba de moça com calda dourada, papos-de-anjo, doce de coco, bolo dos bem-casados, rabanadas de Natal, colchão de noiva, mãe-benta, compota estrelada de carambola. Na idade adulta, coisas mais sérias: "tutu com torresmos de ontem", "vatapá melhor do mundo", "feijoada à minha moda" (cuja receita publicou em livro), linguicinha frita, "feijão preto com gordura e arroz soltinho", "galinha ao molho pardo, de transanteontem", "galinha ensopada com batatas e essas coisas", bolinhos de aipim com bacalhau, "lombinho de porco bem tostadinho", carne-seca e, para as jornadas de boémia, uma reconfortante "canja da meia-noite". Por onde ia, um festival gastronómico: na Bahia, a moqueca e o camarão; no Rio, o arroz de pato do Antiquarius ou o filé à moda do histórico Café Lamas; em Minas, um "molho de pimenta perfeitamente ignaro" e "bolo de carne da Lili", proprietária do Pouso do Chico Rey, em Ouro Preto, onde o poeta costumava hospedar-se. Sendo mimética e poliamorosa, a ementa de Vinicius era politicamente incorrecta, e não concedia espaço a saladas e a verduras dietéticas: "Não comerei da alface a doce pétala/ Nem da cenoura as hóstias desbotadas/ Deixarei as pastagens às manadas/ e a quem mais aprouver fazer dieta."

No estrangeiro, as saudades de casa confundiam-se com as da boa comida e, numa carta que escreveu em França para Tom Jobim, em Setembro de 1964, Vinicius começava por dizer: "Estou aqui hospedado num quarto de hotel que dá para uma praça que dá para toda a solidão do mundo." Mais adiante, confessava sonho do regresso aos comeres da pátria: "Vou agora escrever para casa e pedir dois menus diferentes para a minha chegada. Para o almoço, um tutuzinho com torresmo, um lombinho de porco, bem tostadinho, uma couvinha mineira e doce de coco. Para o jantar, uma galinha ao molho pardo, com um arroz bem soltinho e papos-de-anjo. Mas daqueles que só a mãe da gente sabe fazer, daqueles que, se a pessoa fosse honrada mesmo, só devia comer metida num banho morno e em trevas totais. Pensando, no máximo, na mulher amada. Pois aí se vê como eu estou me sentindo: nem cá, nem lá."

No passado século XX e no XXI actual, Portugal tem grandes escritores e poetas, dignos homens e mulheres de letras. Poucos se aproximam, contudo, da grandeza de Vinicius. E se enfileirarmos mais alguns nomes da literatura do Brasil - Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Jorge Amado, Mário de Andrade, Raduan Nassar, Nelson Rodrigues, Rubem Fonseca, just to name a few -, facilmente concluiremos que a vantagem vai nítida e claramente para o lado de lá do Atlântico. Questão de escala, decerto, mas também ou primordialmente questão de língua, da maior plasticidade e elasticidade da língua na sua versão dos trópicos, o que é mérito de quem a fala e escreve assim, de forma solta e gaiata, tão diferente da nossa, que é austera e sisuda, com menos fantasia e graça. A diferença será também, naturalmente, da matéria-prima com que se escrevem as novelas, e que o Brasil tem de sobra, na dimensão e no colorido do território, na diversidade das suas gentes e, sobretudo, na amplitude dos seus dramas humanos, exemplarmente expressa num livro recente de Isabel Lucas, Viagem ao País do Futuro - O Brasil pelos Livros.

"Brasil, país futuro", foi aliás o nome que Stefan Zweig lhe deu, ao que os críticos logo replicaram, com acidez irónica, que o Brasil era e sempre seria um país de futuro... De facto, olhando a sua confrangedora actualidade, surpreende que uma terra tão pujante em riquezas da natureza e capital humano continue sempre adiada, na eterna espera de um futuro melhor e mais justo para o seu povo. Como as famílias de Tolstoi, cada país será infeliz à sua maneira, mas a infelicidade do Brasil dói-nos fundo e custa-nos mais, dói-nos mais do que a de outros, pois a tristeza é sempre mais notória num povo de seu natural alegre e de bem com a vida. Onde está hoje o país de Vinicius, de Jobim e Gilberto, da bossa, do samba e da bola? Causa aflição a angústia, a cruel desesperança em que o Brasil está hoje mergulhado, culpa primeira de Bolsonaro e seus desastres, sem dúvida, mas também da atmosfera insalubre, irrespirável, de uma vida pública em constante guerrilha, com uma violência verbal sem precedente nem tino. Há dias, o relator da comissão parlamentar de inquérito que investiga as responsabilidades do governo na catastrófica gestão da covid-19, o senador Renan Calheiros, classificou o presidente como um serial killer, que tem "compulsão de morte e continua a repetir tudo o que fez anteriormente". Por muito que Bolsonaro o mereça, esta não é a forma de um senador, ademais líder de uma comissão de inquérito, se dirigir a um presidente eleito e apreciar os seus actos. Sabemos que o Brasil é o país lusófono mais afectado pela pandemia, e um dos piores do mundo nas letais estatísticas, com mais de 600 mil vítimas mortais, mas insultar Bolsonaro daquela forma e usar o mesmo tipo de linguagem que ele é fazer-lhe o jogo, é dar-lhe argumentos para continuar a atacar tudo e todos e a desrespeitar as instituições da nação. O Brasil é um caso de estudo sobre onde pode levar a radicalização do discurso, a crispação dos gestos e das atitudes, de parte a parte, a destruição da moderação política, cívica e intelectual.

Mas se insultar é mau, calar e nada dizer é pior. No passado 8 de Outubro, Jair Messias Bolsonaro, 38.º Presidente da República Federativa do Brasil, afirmou que Portugal vivia "a quinta pior crise em 150 anos", enfrentando uma "situação crítica" nos "supermercados e nos postos de gasolina". Para fundar a apreciação, bolçou: "Tem uma menina de Juiz de Fora, que está em Portugal, que tem mandado uns vídeos para mim (...) em supermercados, em postos de gasolina, mostrando como está a situação crítica lá em Portugal também."

É grave, muito grave, que um chefe de Estado estrangeiro se pronuncie assim sobre a situação interna de outro Estado soberano, dizendo para mais inverdades, clamorosas mentiras, com base nuns vídeos enviados por uma amiga imigrante, seja lá ela quem for. Sabíamos que, com Jair Bolsonaro, as relações diplomáticas entre Portugal-Brasil nunca estiveram tão baixas, próximas do zero ou menos. Ficamos agora a saber que um presidente de um país da CPLP é capaz de proferir uma enormidade sobre outro irmão lusófono, manchando a sua imagem perante o mundo. Ignora-se se houve alguma reacção por parte do MNE e se, no segredo das chancelarias, o embaixador brasileiro foi chamado às Necessidades, que explicações deu ou não deu, que mensagens se mandaram a Brasília, o que se fez ou não fez. Em termos públicos, parece que não se fez nada, numa opção pelo silêncio que talvez seja explicável pelos altos interesses da diplomacia, mas que ao cidadão comum se afigura estranha, pouco condizente com a defesa da honra e do bom nome de um país inteiro.

A terminar, e já que falámos de literatura e política, talvez fosse bom repensar de vez o calamitoso Acordo Ortográfico de 1990. Sobretudo, termos presente que, num balanço global, o AO90 não contribuiu em nada, absolutamente em nada, para melhorar as relações culturais entre Portugal e Brasil, as quais, por razões de vária ordem, foram muito mais pujantes em tempos idos - nos anos 1940, 1950, 1960 - do que no presente democrático. Entre outros exemplos, o que se passa no domínio do livro é inconcebível, com os editores portugueses a terem de enfrentar mil e um protecionismos para, em raros casos, conseguirem colocar os seus livros nas terras de Vera Cruz. De lá para cá sucede o mesmo e, pasme-se, chega a ser mais fácil importar uma obra inglesa ou americana através da Amazon do que mandar vir um livro de uma editora do Rio ou de São Paulo. De que nos serve um acordo ortográfico se depois não podemos comunicar? Faz isto sentido? Que palermice pegada.

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG