Censurar ou não censurar livros infantis? Não será melhor antes discutir como se formam os estereótipos?
A questão da censura aos livros tem sido objeto de recente polémica. Grita-se aos quatros ventos que o lápis azul do tempo do fascismo regressou, que estão a dar cabo da liberdade do criador, a anular a sua voz, que tem de enquadrar a escrita no seu momento histórico, etc.
Em relação à ficção para adultos, esta possibilidade será porventura ridícula. Os bons autores procuram a sua voz individual para tocar no que é intrinsecamente humano e intemporal e a maldade e o preconceito fazem parte da natureza humana. No entanto, já nos anos quarenta se alterou o título de um livro de Agatha Christie de Ten Little Niggers para And then there were none, e não me parece que, por isso, tenha vindo grande mal ao mundo.
Quanto aos livros para miudagem, o debate talvez mereça uma reflexão mais aturada do que apenas gritar de um lado ou do outro da barricada.
Vários estudos empíricos demonstraram que a empatia, a identidade étnica, e os estereótipos se formam em idades precoces. Apesar de poderosos determinantes de comportamentos, a ação dos estereótipos e dos juízos preconceituosos é muitas vezes inconsciente. Os dados científicos apontam para a existência de um processamento cognitivo automático que está na base na categorização de pessoas de forma enviesada. Este tipo de associações automáticas pode encontrar-se mesmo em indivíduos que não partilham ou até repudiam o conteúdo de determinados preconceitos. Ou seja, o enviesamento do preconceito é uma espécie de "nhanha" que se infiltra no processamento da informação em contextos e situações específicas, mesmo em pessoas que se dizem contra o racismo, contra a misoginia, etc. E este processamento implícito e enviesado conduz a um perpetuamento da discriminação.
É curioso, também, verificar como os cientistas de computação dão conta de como enviesamentos de género ou raça contaminam os algoritmos de algumas aplicações de Inteligência Artificial, o que pode funcionar como um indicador de quão disseminados estão estes juízes preconceituosos. Portanto, se queremos mudar de facto a sociedade devemos usar todos os meios possíveis para combater as várias formas de discriminação, porque esta parece entranhar-se no pensamento como as nódoas difíceis.
Em sentido contrário, a literatura infantil, ou certo tipo de literatura infantil, pode ser um poderoso instrumento de combate aos estereótipos. Existe uma quantidade significativa de estudos que sugerem que a introdução de temas de diversidade e inclusão em histórias infantis conseguem reduzir enviesamentos provocados pela sistemática exposição a estereótipos. Por outro lado, a leitura conduz as crianças a integrar o pensamento sobre os outros na própria cognição e experienciar os seus sentimentos e estados de espírito (e, isso é empatia!) e nesse sentido pode ajudar a reduzir os preconceitos. O desenvolvimento da empatia através da leitura da literatura infantil constitui outra maneira através da qual se pode diminuir os juízos preconceituosos, na medida em que os preconceitos resultam em parte da ausência de empatia.
Recordo-me na minha infância ter lido num livro dos Sete esta expressão "pretinho por fora e branquinho por dentro". Queremos mesmo continuar a ler às nossas crianças este tipo de expressões? Lemos e a seguir fazemos um enquadramento histórico da época em que se utilizavam estes termos?
A ciência tem evidenciado como são adquiridos os preconceitos e, sem exageros, talvez devêssemos integrar esses conhecimentos quando olhamos para a literatura infantil. Quando diminuímos a quantidade de sal no fabrico de pão alentejano porque sabemos que o sal faz mal estaremos a censurar o pão alentejano?
Professora do Ispa - Instituto Universitário e escritora