Cavaco: entre o nervosismo da esquerda e o êxtase da direita
O antigo presidente Cavaco Silva decidiu fazer críticas muito duras ao governo de António Costa. Está no seu pleno direito de as fazer. Boa parte delas são, para qualquer analista isento, justas. Ainda que possamos sentir que o tom tenha sido exagerado num homem que foi sempre de poucas palavras, tanto como primeiro-ministro como Presidente da República, como também nos períodos em que esteve afastado da política activa.
Mas a democracia ganha com análises diversas, sobretudo quando são um contrapoder em relação a um governo de maioria absoluta. Seja ele qual for. E as críticas, mesmo de ex-presidentes, devem ser encaradas com normalidade e tranquilidade. Não se entende, por isso, o nervosismo que se instalou desde a esquerda radical anti-UE e anti-NATO, como o PCP, até à esquerda moderada e que governa, como o PS.
Cavaco Silva tem mesmo o poder de conseguir unir todas as esquerdas contra si, um poder raro que talvez apenas Passos Coelho também tenha. E não é caso para tanto. O ex-presidente, com as suas críticas - repito: boa parte delas justas - até ajudou o PS e o governo na medida em que mostrou como se faz oposição, mostrando que o líder do PSD não o tem feito.
Em Maio de 2023 alguém olha para Luís Montenegro como uma boa hipótese para ser primeiro-ministro? Alguém lhe conhece um pensamento consistente para tirar o país da estagnação? Alguém lhe conhece um pensamento consistente para inverter a ultrapassagem que outros Estados da União Europeia fazem a Portugal? Alguém lhe conhece um pensamento consistente que se aproxime de um desígnio nacional? Cavaco Silva colocou em evidência que o maior partido da oposição (ainda) não está preparado para governar.
Por isso também não se entende o êxtase colectivo da direita com as críticas do antigo chefe de Estado. Elas foram um atestado de incompetência a toda a direita, nomeadamente ao PSD. Para o bem da democracia é urgente que o centro-direita crie uma alternativa para governar. Não sabemos se este executivo vai durar meses, um ano ou pouco mais do que isso. Até pode manter-se até ao fim da legislatura, mas é necessário que o país tenha uma alternativa democrática até lá.
Uma nota final. Vários comentadores afirmaram que Mário Soares também foi bastante interventivo depois de ter deixado a presidência. É verdade. Mas há que dizer algumas coisas. Soares não é nem nunca será comparável a Cavaco Silva. Tinha um estatuto na sociedade e na política portuguesas que Cavaco Silva não tem. Mário Soares foi um resistente ao regime de Salazar e Caetano, esteve ao lado de Humberto Delgado contra Américo Tomás, esteve preso, esteve deportado e esteve exilado. Ainda antes da revolução fundou o PS, depois do 25 de Abril de 1974 lutou contra o comunismo, teve um papel primordial na descolonização (gostemos ou não da forma como se fez), preparou e colocou Portugal na então CEE, hoje UE, e foi eleito Presidente da República numas míticas eleições em que venceu por pouco contra Freitas do Amaral, tornando-se o primeiro chefe de Estado civil da democracia. E como Presidente foi sempre bastante popular, alcançando 70% na sua reeleição, um recorde nunca batido. A vida política de Mário Soares daria uma saga cinematográfica com vários filmes, a vida política de Cavaco Silva não. Ainda assim, tem todo o direito de fazer todas as críticas, mais ou menos duras, que entenda. E isso não deve causar nervosismo nem êxtase.
Presidente do movimento Partido Democrata Europeu
(O autor escreve de acordo com a antiga ortografia)