Casamento incestuoso

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Há 100 anos, por estes dias, o diretor do Diário de Notícias, Augusto de Castro, desembarcava na estação ferroviária de San Sebastian e dali era encaminhado para o Palácio de Miramar, onde o esperava Afonso XIII, rei de Espanha, para uma entrevista exclusiva que não quisera dar em Madrid.

O encontro de duas horas, concertado entre o diretor deste jornal e os serviços do monarca espanhol, resultou num recado deste para Lisboa: "É necessário que terminem para sempre, entre Portugal e Espanha, desconfianças recíprocas que não têm razão de ser. Dentro da independência política dos dois povos, que ninguém respeita mais do que eu, precisamos de entrar num novo período de entendimento, sobretudo no campo económico". Mais concreto, Afonso XIII já dizia então que "Lisboa é o Porto natural de Madrid sobre o Atlântico" e acrescentava mesmo: "No dia em que os senhores quiserem, a viagem Lisboa-Madrid far-se-á em 7 horas".

Ora, 100 anos e 33 cimeiras luso-espanholas depois, o estado da arte é o que sabemos: atualmente, a ligação ferroviária entre as duas capitais dura pelo menos 9 horas e obriga ao transbordo em três comboios, enquanto única conexão internacional em uso é uma velha e lenta automotora a diesel, entre o Porto e Vigo.

As responsabilidades deste escandaloso descarrilamento entre as políticas de Lisboa e Madrid são recíprocas e, para lá das contingências da história de cada um, ou da miopia de sucessivas governações de ambos, dizem respeito às diferentes visão e prioridades de cada lado sobre o desenvolvimento da rede de alta velocidade na Península e a sua ligação à Europa Central.

Enquanto à Espanha parece bastar-lhe o modelo radial Madrid-Badajoz-Lisboa, Portugal precisa de vertebrar a ferrovia em todo o eixo Atlântico (Lisboa-Porto-Vigo e Porto-Aveiro-Salamanca-Madrid), em benefício também das regiões espanholas afetadas. Aparentemente, tratar-se-ia de interesses complementares e não incompatíveis, para o que se pediria apenas vontade política de ambos os lados, dada a afinidade ideológica entre os dois governos e num momento de particular cordialidade traduzida já este ano na defesa de interesses comuns em Bruxelas, com ganhos como o mecanismo ibérico para limitar o preço do gás ou o acordo com a França sobre as conexões energéticas.

Acontece que, para lá dos mimos trocados, a 33ª cimeira que se realizou há dias, em Viana do Castelo, foi mais uma oportunidade perdida quanto ao futuro das ligações ferroviárias entre os dois países. Do outro lado da fronteira, as Juntas Autonómicas da Galiza e da Extremadura queixam-se de ter sido colocadas à margem das conversações, enquanto o chefe do governo de Madrid, Pedro Sánchez, lembra que já está pronto o troço de 150 quilómetros entre Badajoz e Plasencia, com ligação à rede de alta velocidade espanhola. Quanto ao lado de cá, vai ser preciso esperarmos pelo menos até ao início de 2024, quando estiver concluída a construção do troço Évora-Elvas, para que volte a haver um comboio direto entre as capitais dos dois países. Já no que respeita à ambição portuguesa de ligar em alta velocidade toda a frente atlântica que vai de Lisboa à Corunha, a resposta espanhola traduzida no seu orçamento de Estado para 2023 é bem revelador das faltas de interesse e prioridade que atribuem ao projeto: está lá inscrito o valor de 29.900 euros, digo bem, vinte e nove mil e novecentos, para estudar o assunto.

Ora, num tempo em que a economia reclama a abertura de novos corredores ferroviários internacionais - quase sete mil empresas portuguesas exportam os seus produtos para Espanha, enquanto mais de 15 mil empresas espanholas exportam para Portugal, que tem no vizinho o seu principal fornecedor e cliente - a desconversa ferroviária entre vizinhos ibéricos faz lembrar aquela frase histórica por um cónego português, em Braga, por ocasião da visita de Afonso XIII: "Espanha e Portugal são países irmãos, mas a Santa Madre Igreja não aprova o casamento incestuoso".

Jornalista

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