Carta de Paris
Nada perturba mais a nossa capacidade de pensar o presente para tentar mudar o futuro do que esta enjoativa sensação de déjà vu (os fascismos, as xenofobias, as exclusões, os racismos, os bandos armados pelas ruas, o apelo a líderes fortes, nem que seja pela cor das fardas), que nos esconde o que de novo nos chega com este sinistro cortejo. O novo está onde? No individualismo egocêntrico predominante, que não costumava acompanhar os movimentos de extrema direita, fundados antes numa camaradagem viril? Nos extraordinários mecanismos de controle sobre as pessoas que as novas tecnologias vieram tornar possíveis? Nunca foi tão atual nem se revelou tão premonitório o título de um livro publicado em 1939 por um investigador russo, Sergei Tchakhotin, título esse que era A Violação das Massas pela propaganda política. O autor era um menchevique exilado, que desempenhou um papel ativo na reconstrução, após 1945, do SPD alemão.
Desde o tempo de Tchakhotin, os mecanismos de violação das massas tornaram-se muito mais qualificados tecnologicamente e muito mais dirigidos, através da utilização das redes sociais, a cada um individualmente. Não apelam à formação de grandes movimentos de massas, mas incitam à criação de bolhas que repetem, reiteram e divulgam as mensagens da nova extrema direita, mensagens e apelos que se revelam, aliás, móveis e flexíveis, dentro da fidelidade ao núcleo duro da ideologia.
Pensar que o que vem aí é inteiramente novo é tão falacioso como julgar que nada há de novo sob o sol ardente do fascismo. Mas o nosso pensamento, a nossa análise, a nossa crítica devem dirigir-se em prioridade ao que de novo traz essa procissão de velhos fantoches, às técnicas sofisticadas que utilizam, aos métodos de que se servem, às falsidades que conseguem impor como verdades, ao mecanismo do fake.
Escrevo-vos de Paris. À parte existir aqui uma extrema esquerda forte (ao contrário da nossa), enquanto nós ainda temos um partido socialista (por enquanto) mais forte do que o de cá, a extrema direita por estes lados prospera e cresce, mais lida e educada do que a nossa, é certo, mas é a vida, a esquerda que não quer submeter-se a Mélenchon (o PS, nomeadamente) tergiversa e divide-se, a direita oscila entre um Macron enfraquecido e uma extrema direita confusa, depois da condenação e consequente inelegibilidade de Marine Le Pen, o que permite manter os mesmos objetivos: como conseguir diminuir as conquistas sociais dos trabalhadores?
Nem a guerra, tão iminente, parece afetar grandemente a opinião pública. Mas diz-se que era assim do mesmo modo o ambiente em Paris em 1914 e em 1939. E que havemos nós de fazer, qual é o nosso poder enquanto europeus, que rosto mostraremos ao mundo, nós que nem um extermínio a decorrer sob os nossos olhos, em Gaza, conseguimos contrariar?
Diplomata e escritor