Carta a José Maria Eça de Queirós sobre as Novas Conferências do Casino

Meu caro colega na diplomacia e ídolo nas letras,

A sua permanente e insaciável curiosidade sobre este mundo que foi o seu e que continua, no que nos toca, a deambular entre o Grémio e a Casa Havanesa, cada vez mais me surpreende. Pergunta-me agora, lá dos Elísios, por estas que se intitulam "Novas Conferências do Casino", promovidas por um Círculo que tem o seu nome e pelo mesmo Grémio Literário que o teve como sócio, além de um novo Centro Nacional de Cultura, inspirado por um tetraneto do seu grande amigo Joaquim Pedro.
A primeira conferência incidiu, não já sobre o nosso atraso peninsular e decadente, como foi no seu tempo, mas sobre a decadência de todo o equilíbrio do nosso mundo atual, patente na guerra que medra na Ucrânia.

Dir-me-á que não vê nisto grande novidade, que já no seu tempo a guerra da Crimeia veio dividir a Rússia de todas as potências da Europa ocidental e que essa falha sísmica na geopolítica do nosso continente era estrutural e previsível. A ambivalência da Rússia em relação à Europa, sempre carente de por ela ser reconhecida como potência maior e sempre assombrada pelo medo de vir a ser destruída, por falta desse reconhecimento, era já um dado político nesse seu tempo em que o Steinbroken considerava tudo isto em geral "excessivement grave".

Na verdade, caro Mestre, o mundo mudou alguma coisa. A autocracia russa, que foi magnificamente analisada pelo primeiro convidado das "Novas Conferências", Giuliano da Empoli, é hoje fautor de um desequilíbrio global nas relações de poder na esfera internacional bem maior do que o império czarista (que, aliás, depois da guerra da Crimeia, voltou a ser o aliado privilegiado dos seus antigos inimigos inglês e francês na contenção das ambições alemãs) alguma vez foi para a Europa. O comunismo entrosou depois com o messianismo tradicional da cultura e da religião russas (como bem analisou Berdiaev) e, com Estaline, aliou a Igreja com o Exército e o Estado russo na "Grande Guerra Patriótica" contra a Alemanha nazi. Hoje, com a derrocada do comunismo, a Rússia teme de novo ser cercada, não já pelas forças do capitalismo, mas por todas as potências ocidentais e por isso apela a uma nova guerra patriótica, agora desembaraçada do comunismo.

Giuliano da Empoli tenta no seu excelente livro, a que deu a forma de romance para poder ir mais longe no desenho dos caracteres, fazer-nos compreender o que vai na cabeça de Putin, não enquanto pensador autónomo, mas enquanto defensor de uma ideia tradicional (tão tradicional, que foi capaz de nos surpreender, porque nunca estamos atentos ao que permanece imóvel) da Rússia como Estado nacional e como potência que luta por voltar a ser temida nas relações internacionais.

Não nos surpreende o desaire de Putin, que conseguiu isolar a Rússia no mundo (mas o que ele procura é o reconhecimento pelo terror e não pela simpatia) e entregá-la a uma muito provável hegemonia chinesa, que a subalternizará inevitavelmente. Não fora o facto e o argumento que derivam de um arsenal nuclear que é o segundo maior do mundo...

Compreender as motivações e as anacrónicas ilusões imperialistas de Putin não é de forma alguma desculpá-lo, tal como assumir que um dia teremos de voltar a falar com a Rússia não é derrotismo nem traição à Ucrânia invadida, é simples realismo. Infelizmente tudo o que fuja de um discurso miltoniano de luta entre os anjos do céu e os demónios dele caídos é hoje encarado como traição ao nosso necessário apoio à Ucrânia. Admito e compreendo que a Polónia e os bálticos gostassem que a Rússia desaparecesse como a Fada Má do Leste se desfez em poeira no livro O Feiticeiro de Oz. Mas não é com o pensamento mágico que se constroem estratégias convincentes e eficazes contra os inimigos conjunturais ou estruturais.

Meu caro Amigo, fique tranquilo que o seu nome foi bem honrado pelos dirigentes do círculo seu homónimo, os Drs. Pedro Rebelo de Sousa e José Sarmento, bem como pelo nosso presidente do Grémio Literário (você havia de gostar de o conhecer) e pela direção de um Centro Nacional de Cultura mais recente, mas não menos ativo e ... e... (falta-me a palavra, sebo!) empreendedor (isso mesmo, empreendedor, obrigado Melchior). Receba um abraço daqui, "sub temine fagi", do seu admirador

Luís Filipe Castro Mendes

Diplomata e escritor

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