Canções de Sangue em Flor

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[Texto de ensaio]

Antes do dia novo, as canções caminhavam em segredo, sussurradas por vozes que sabiam esperar, levando nos bolsos a promessa de uma manhã limpa. Eram canções com cheiro a exílio e a pólvora contida. Eram o sangue em flor de um tempo suspenso.

Depois, veio a madrugada de Abril. E o silêncio rebentou em mil vozes. O país aprendeu a gritar, às vezes com excesso, outras com ternura. As palavras libertadas correram pelas ruas como rios que há muito buscavam o mar. A canção, que antes era semente, fez-se enxada e bandeira, martelo e abraço. Tocava-se por todo o lado — em praças, em fábricas, em assembleias improvisadas —, e o povo reconhecia-se no eco do próprio grito.

A melodia tornou-se manifesto, pão repartido, juramento de terra. A música passou a ser o rosto do que se queria construir — um país de iguais, uma casa comum. Mas também trouxe a vertigem do excesso: a ânsia de mudar tudo depressa, de transformar o sonho em decreto. E, nesse fervor, as vozes que antes cantavam lado a lado começaram a desafinar umas das outras. A liberdade, recém-nascida, já mostrava o seu preço — o da diferença.

Mesmo assim, era tempo de andar. Havia palcos improvisados, canções escritas a lápis, ensaios nas madrugadas. O canto era arma e consolo. Cada refrão ensinava a respirar depois do medo. O povo juntava-se, sem maestros, num coro desajeitado, mas sincero, onde cada um procurava o seu tom. E se o país se dividia em certezas, a música continuava a ser o território comum, onde cabiam a utopia e a dúvida, a fúria e o afeto.

Algumas vozes quiseram erguer o mundo com o punho; outras procuraram salvar a ternura entre as pedras. Havia quem gritasse revolução e quem pedisse apenas um pouco de sol para as janelas abertas. Entre o ferro e o vinho, entre a enxada e a viola, desenhava-se o retrato de um país em trânsito, entre o chão e o horizonte.

A música seguia, ora lírica, ora combativa, dizendo que a liberdade é mais difícil de sustentar do que de conquistar. Que a justiça não se faz apenas de palavras grandes, mas de gestos pequenos. Que uma canção pode incendiar, mas também curar.

Com o passar do tempo e desde a madrugada de Novembro, o eco da revolução foi-se transformando em memória, até ao presente. Algumas melodias ficaram presas ao calendário, outras souberam atravessar o tempo e ainda hoje nos falam, como se o passado fosse um espelho onde se reconhece o presente. São as mesmas vozes que um dia disseram “basta”, e que agora, mais serenas, sussurram “ainda”.

Entre cravos e cicatrizes, o país aprendeu que a utopia não é um destino, mas um caminho. Que a liberdade precisa de ser afinada, todos os dias, como uma guitarra que nunca se cala.

E assim, as canções continuam, porque são as mesmas que nasceram da clandestinidade e da esperança, agora menos inflamadas, mas mais fundas. Cantam o que fomos e o que ainda queremos ser – um povo que não desiste de se ouvir.

Afinal, cada canção é um pedaço de sangue em flor, ou seja, a memória viva de um país que sonha, cai, levanta-se e canta. Ainda e sempre!

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