Camões, nosso contemporâneo
O que mais aprendi na leitura de Camões foi a música própria da nossa língua, que este grande poeta soube fixar, a partir dos ritmos italianos da “medida nova”, passando pela pronúncia clara e aberta do castelhano e pelo rigor sintático do latim, indo de Vergílio e Petrarca a Garcilaso e Boscán. O português deve-lhe a suprema melodia da sua linguagem poética.
E ninguém o ultrapassou. Cesário e Pessanha criaram novos ritmos a partir da sua linguagem, Pessoa desdenhou-o, sem o conseguir ultrapassar, e nós todos, os que nos atrevemos a entrar “nos recessos de uma língua nova”, como dizia Jorge de Sena, e ousamos escrever poesia, somos seus devedores.
Eu tive a sorte de ler muito jovem o texto precursor de Jorge de Sena “Ensaio de revelação da dialética camoniana” (1948) e essa leitura abriu-me o espírito para a subtileza e complexidade intelectual da obra de Camões e preparou-me para as análises de Hélder Macedo, de Vasco Graça Moura e de Vítor Aguiar e Silva, entre outros.
Não é um poeta simples, nem um poeta unívoco. Como em todos os grandes poetas, passam por sobre todas as suas crenças e ideologias, mais ou menos assumidas, as ambiguidades e as contradições inerentes à “mísera sorte, estranha condição” destes “bichos da terra tão pequenos” que nós somos e que a poesia vem sempre inquietar mais do que doutrinar.
O seu tempo não é o nosso, mas a mestria da sua poética e as suas mais profundas inquietações humanas são bem do nosso tempo e da nossa cultura. Não diminuiu o “desconcerto do mundo” nem a “má fortuna”, que, ligada ou não aos nossos erros, temperada ou não pelo “amor ardente”, continua a seguir-nos, como implacável Némesis.
As contradições e subtilezas do amor, em que Camões vai além dos trovadores e de Petrarca na lúcida consciência da dilaceração interna em que vive o ser amoroso, “cada um com seu contrário num sujeito”, como brilhantemente diz a Canção VII, também o aproximam de nós. Camões está entre os nossos contemporâneos, como o considerou Hélder Macedo, porque o triunfo da grande poesia é sobreviver a todos os tempos.
Isso não quer dizer que nos possam ser indiferentes as determinações da sua época na nossa leitura de Camões. Para citar três livros recentes, no primeiro Frederico Lourenço mostra tudo o que Camões deve à cultura greco-latina de que o seu tempo estava imbuído e que nós, com algumas exceções, já esquecemos; por outro lado, Carlos Maria Bobone procura integrar-nos na atmosfera cultural que formou e rodeou o nosso poeta, enquanto Isabel Rio Novo tenta e consegue o difícil empreendimento de apresentar uma nova visão sobre a biografia de Camões, sobre a qual tão poucos documentos dispomos.
Mas a leitura, em voz alta e clara, da poesia de Camões será sempre a melhor maneira de nos aproximarmos da sua voz.