Caminhos paralelos

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1 Tal como as estudou Norbert Elias, as chamadas normas de cortesia são um passo decisivo no que Elias chama o “processo civilizatório”.

Ao assistirmos ao espetáculo de um grupo a escarnecer cruelmente a situação de uma colega cega, não podemos deixar de o considerar excluído do processo civilizatório e da base mínima ética que rege o convívio numa sociedade.

Mas se o mesmo grupo decide caluniar pessoas que a Justiça ou já ilibou ou nem sequer chegou a acusar, passámos de uma grave carência de civilização a um ato criminal de difamação.

Se tudo isto se passa numa assembleia legislativa, inquieta-nos a poluição do espaço público, mas mais ainda a impunidade reinante.

É que uma coisa são impropérios no calor de um debate, que podem beneficiar de uma presunção de liberdade de expressão, outra são insultos gratuitos e soezes a um estado físico pessoal ou uma premeditada calúnia dirigida a quem já demonstrou cabalmente a sua inocência.

Se consultarmos os debates parlamentares havidos na Monarquia Constitucional ou na Primeira República, encontraremos por certo línguas afiadas, apartes agressivos e muitos insultos - mas nunca tão grandes faltas de respeito pelos princípios mínimos da convivência, como estas que se veem agora.

E a tendência dominante é passar por cima destas coisas como se nada de grave tivesse acontecido.

2 Aprendemos na escola que a dificuldade de conceber o Direito Internacional como um verdadeiro Direito reside na ausência de sanção pela violação das suas normas.

No século XX procurou-se, desde o fim da Primeira Guerra Mundial, suprir (ainda que limitadamente) essa falta de sanção, através da criação de entidades políticas multilaterais e de tratados que imponham normas de atuação aos seus signatários, criando mecanismos sancionatórios para a violação dessas normas.

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e o Tribunal Penal Internacional nasceram da consciência da necessidade de firmar o Direito Internacional nalgum mecanismo vinculativo e sancionatório, ainda que limitado e incipiente.

A evolução das relações internacionais tem conduzido à negação total desses mecanismos pelas grandes potências e ao reforço da soberania absoluta dos Estados, numa lógica hobbesiana de homo homini lupus.

O desprezo de Trump pelos princípios mínimos do Direito Internacional vem tristemente espelhar o desprezo pelos princípios democráticos da convivência entre adversários políticos e o esquecimento das normas mínimas de cortesia no convívio social a que se assiste crescentemente nas nossas sociedades.

Freud diria que estamos a viver “o retorno do recalcado”. Como se a recusa da civilização nos viesse conduzir ao mais primitivo e irracional estádio da Humanidade.

3 Não nos surpreenderá o paralelismo destes caminhos. Estamos a assistir ao nascimento de um estado de exceção permanente e digitalmente monitorizado, que conduz ao mais eficiente e perigoso totalitarismo.

Dedicado a Ana Sofia Antunes,

Eduardo Ferro Rodrigues

e Paulo Pedroso

Diplomata e escritor

Diário de Notícias
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