Camões, poeta e soldado
Fiz um dia a seguinte pergunta a Olga Ovtcharenko, autora ainda na era soviética da primeira tradução de Os Lusíadas para russo a partir do português: “Camões, comparado com outros autores famosos da época, como o inglês William Shakespeare, tem uma diferença, que é ter sido soldado e viajado muito. Esteve na Ásia, também em África. Isso dá mais vida àquilo que escreveu?” A resposta foi breve, mas sem deixar margem para dúvidas sobre a relevância da carreira de armas do poeta português do século XVI: “ Com certeza. Não lhe falta o engenho e o estudo, com muita experiência à mistura.”
Engenho, ou talento, e estudo, ou muita cultura, não faltavam a Camões. Mas ver o mundo fez certamente diferença na sua obra, de que Os Lusíadas são o expoente. E o autor da grande epopeia portuguesa, um seguidor de Homero e de Virgílio, viu o mundo graças a ser soldado. Não foi caso único na sua época entre os homens de letras, pois se Shakespeare realmente nunca terá saído de Inglaterra, já o espanhol Cervantes combateu em Lepanto e foi espião em Argel, mas é impossível pensar que Camões sem ter estado em tantos dos sítios que Vasco da Gama percorreu na sua demanda da Índia, tivesse produzido algo tão único como a narrativa de Os Lusíadas. Que continuam, aliás, a ser traduzidos, nestes últimos anos, para turco, árabe e também bahasa, língua oficial dessa Indonésia, ilhas das especiarias, que foi um dos muitos países onde o português foi soldado, como conta Isabel Rio Novo , numa notável biografia publicada em 2024, por ocasião dos 500 anos do nascimento.
Ora, é exatamente o soldado que perdeu o olho em Ceuta e guardou a fortaleza em Ternate, o tema de um livro que acaba de sair com o título 500 Anos de Camões e a Defesa Nacional. Sob a coordenação do diretor-Geral de Política de Defesa Nacional, o tenente-general Nuno Lemos Pires, e da major-general Ana Baltazar e da coronel Cristina Fachada, o livro inclui textos do ministro Nuno Melo (um dos vários autores que, e bem, citam a recente biografia escrita por Isabel Rio Novo), também do chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, general José Nunes da Fonseca, igualmente da ex-ministra Helena Carreiras e da diretora do Instituto de Defesa Nacional, Isabel Ferreira Nunes, ou ainda do general Valença Pinto e do almirante Silva Ribeiro, do historiador António José Telo e do patriarca de Lisboa, Rui Valério, que foi bispo das Forças Armadas. E até do secretário executivo da CPLP, o timorense Zacarias da Costa, ou não fosse Camões poeta maior da língua portuguesa.
Por entre o unânime reconhecimento do génio literário de Camões surge o destaque devido ao papel que a vida de soldado teve naquilo que Camões escreveu, pois, como afirma o próprio ministro da Defesa, se muitos contemporâneos serviram o país como comerciantes ou missionários, neste caso trata-se de alguém “que percorreu o mundo como combatente, ao serviço de Portugal”.
Nesta época em que muito se fala de Defesa, e que, com ou sem pressão americana e ameaça russa, se tornou finalmente evidente que umas Forças Armadas bem equipadas e bem preparadas são essenciais à soberania, este novo livro sobre Camões é valioso para relembrar que, por muito que nos orgulhemos por homenagear um poeta no nosso Dia Nacional, estamos também a homenagear um soldado, um poeta-soldado. E um exemplo de transcendência tanto pessoal, como do país. Hoje, como há cinco séculos, perante tantos desafios geopolíticos, arrisco mesmo dizer, citando Nuno Pinheiro Torres, outro dos colaboradores de 500 Anos de Camões e a Defesa Nacional, que “a dimensão de Portugal nunca foi impedimento em ir mais além”.
Termino, citando mais um dos vários tradutores d’Os Lusíadas que fui entrevistando ao longo dos anos para o DN, o turco Ibrahim Aybek, que se deparou com um texto muito hostil ao Islão e aos próprios turcos, mas no qual sobressai o saber militar do poeta português: “Os Lusíadas mostram o nível de grandeza também do Império Otomano, porque faz uma leitura dele como se fosse o inimigo mais grave e mais difícil de lutar. Então uma vitória contra os turcos seria a vitória mais importante para Portugal. Também fala sobre as tecnologias de guerra da Turquia.” Extraordinário este poeta-soldado Luís Vaz de Camões, admita-se.
Diretor adjunto do Diário de Notícias