“Cala-te Menina, se não levam-te para o Tarrafal”

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“Cala-te Menina, se não levam-te para o Tarrafal”, dizia-me o meu Avô. Frase bizarra para os meus seis anos de infância dourada. Vinte anos depois visitei o Tarrafal. Entendi como é essencial o respeito pelas liberdades de pensamento e de expressão e do direito à privacidade indispensável para o seu pleno exercício. Um Estado de Polícia em Portugal, nunca mais, pensei.

Todo o Direito Processual Penal é Direito Constitucional aplicado e assenta na garantia dos direitos fundamentais dos intervenientes no processo e dos sujeitos processuais. O regime dos meios de investigação e de obtenção de prova respeitam a natureza constitucional dos princípios fundamentais deste ramo do Direito, em particular o da eminente dignidade da pessoa humana.

Quando lemos que António Costa e João Galamba podem ter sido objeto de escutas – de vigilância judicial - durante anos suscita-se a questão da necessidade, da proporcionalidade e da adequação da medida judicial que as autorizou, face ao objetivo que a justificou: o da descoberta da verdade material, qualquer que seja o conteúdo desta.

Gravar conversas telefónicas durante um tão longo período fere o núcleo mínimo do direito à privacidade da pessoa de uma forma intolerável. A sua vida converte-se numa novela acompanhada pelos que intercetam e transcrevem o que ouvem. Estes “ouvidores” tornam-se as pessoas mais próximas dos “ouvidos”, acompanham o seu dia-a-dia, conhecem-nos em quase todas as facetas das suas vidas. Podê-los-iam aconselhar, atenta a invasão continuada da sua privacidade que praticam: “não António, não compres essa comida para o teu cão, da outra vez que o fizeste acabámos no veterinário…”. “João, muda de barbeiro, o preço é muito melhor no do teu amigo Joaquim, ele já to disse tantas vezes…”. O ouvidor medieval, que desempenhava funções semelhantes às do atual juiz de instrução no Direito Canónico, poderá deste modo ter sido substituído pelo polícia que escuta o cidadão em todos os momentos da sua vida.

A aplicação da Justiça obedece ao princípio da celeridade e o Estado Português já foi diversas vezes condenado, pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos por não a assegurar. O tempo a que essa aplicação obedece é fundamental para o respeito dos direitos fundamentais de todos os cidadãos e a morosidade excessiva não pode tornar as suas vidas transparentes aos órgãos de polícia criminal durante anos. Ainda que as sucessivas decisões judiciais de intercetar as comunicações destes possam ser formalmente justas, não o serão materialmente se ofenderem princípios constitucionais básicos, desde logo os da proporcionalidade e do respeito pela dignidade da pessoa humana. As escutas telefónicas são admitidas pela Lei Processual Penal a título excecional e pelo prazo máximo de três meses. Não se estabelece um limite máximo para a renovação periódica da sua admissibilidade porque se supõe que o juiz de instrução interpreta e aplica a aludida Lei à luz dos princípios basilares da nossa democracia, conquistada em Abril de 1974, consagrados na Constituição de 1976.

Recuso um Estado de Polícia. Não quero conhecer o meu eventual “ouvidor”, cujos direitos laborais não têm sido devidamente assegurados, pelas reivindicações que acompanho nas notícias televisivas. Desejo-lhe o melhor, mas, o mais prudente enquanto o regime jurídico das escutas telefónicas não for alterado ou devidamente aplicado, é não falar ao telefone. Estou a fazer um curso sobre formas alternativas de comunicação: através de pombos-correio ou de sinais de fumo. Os pombos sujam na varanda e o fumo dispara os detetores de incêndio do prédio o que me tem causado má vizinhança, mas, apesar de tudo, permitem-me recusar o Estado de Polícia a que não quero regressar.

Ao Tarrafal, Avô, só quero ir de férias. É uma praia magnífica.

Professora da Faculdade de Direito da Universidade Nova

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