Brexitlândia

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A degradação da situação política na Irlanda do Norte deve fazer soar campainhas nas capitais europeias. Eleva a desconfiança sobre o governo britânico, põe em causa o acordo de paz e antecipa o choque escocês. Quem disse que o Brexit já tinha terminado?

O Acordo de Belfast, que celebrou há dias 23 anos, fundou a ordem constitucional que acomodou a paz nas Irlandas e construiu o roteiro de progresso económico sustentável, fruto da pertença ao mercado único. Como se previa, não iria ser o Brexit a consolidar este caminho. Pelo contrário, menos de dois meses bastaram para percebermos a diferença entre a letra de um tratado consolidado na reta final do dramatismo dos prazos e a vontade política na sua concretização. Logo em janeiro, por decisão de Londres, vários bens passaram a pagar taxas aduaneiras, criando de facto uma fronteira no mar da Irlanda, prejudicando a relação entre Belfast e Londres e, sobretudo, minando a crença dos unionistas na benevolência do acordo com Bruxelas. À erosão rápida deste eixo juntou-se a fadiga dos confinamentos provocados pela pandemia, a descapitalização da economia, a cristalização das desigualdades, a perceção das alterações na demografia identitária, e uma homenagem recente de parlamentares do Sinn Féin a uma antiga figura do IRA. O resultado está nas ruas: os mais graves confrontos desde que, em 2013, a diminuição do tempo em que a bandeira britânica deveria estar hasteada provocou confrontos por vários meses com a polícia.

São pelo menos três os efeitos políticos que o atual contexto levanta. O primeiro acaba por empurrar unionistas e nacionalistas para uma frente comum de frustração com Londres. Num executivo de unidade nacional sempre instável, esta convergência forçada pelos efeitos imediatos do Brexit pode contrariar a expectativa de queda do governo, em funções há apenas um ano e cujo programa de quatro partidos foi totalmente condicionado pela pandemia e pelo Brexit. Em última análise, se o governo de Boris Johnson continuar na espiral de insensibilidade e ilegalidade política até aqui revelada, pode acontecer que a pressão interna na Irlanda do Norte se manifeste de outra forma, em cisões mais profundas com a coroa.

O segundo dado está relacionado com este quadro de degradação política. A espaços, a reunificação das Irlandas vai ganhando tração no debate público a norte, um tópico clássico da agenda do Sinn Féin que pude testemunhar há quatro anos quando, de forma absolutamente inusitada, me sentei na conferência anual do partido, em Dublin, e vi Gerry Adams apresentar um programa sustentado de reunificação com indicadores económicos, financeiros, sociais e muita prospetiva política sobre o caminho que o Brexit tomaria. Os próximos meses mostrarão se este debate tem condições para acelerar socialmente em função dos desequilíbrios que as economias da Irlanda do Norte e da República da Irlanda destaparem. Apesar dos avanços desde o acordo de paz de 1998, o futuro próximo testemunhará a chegada dos generosos envelopes financeiros da UE a Dublin e a perceção a norte sobre se continuará a ser vantajoso permanecer no Reino Unido ou olhar com outra precisão para a alternativa.

Por fim, ao contexto pós-Brexit de instabilidade do Acordo de Belfast vai juntar-se o efeito imprevisível provocado pelas eleições escocesas de 6 de maio. Esta segunda via de erosão da integridade do Reino Unido tomará em conta a dinâmica independentista provocada pela provável vitória do SNP, acelerada pela dimensão da maioria política e social que poderá exigir um novo referendo, saído de uma negociação com Londres ou de uma deriva unilateral de Edimburgo.

A atenção das capitais europeias deve ser redobrada sobre o que se está a passar nas Ilhas Britânicas. Quem disse que 31 de dezembro 2020 fechava definitivamente o Brexit não percebeu o que se passou nos últimos anos.

Investigador

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