Brasil: amanhã há de ser outro dia?
Claro, responderia La Palisse à pergunta que escolhi para título do artigo de hoje, inspirado na famosa canção. A questão é saber se será melhor ou pior ainda do que já está a situação no maior país de língua portuguesa (e também o segundo país "negro" do mundo, depois da Nigéria), após três anos de governação de um confesso defensor da ditadura militar de 64 no referido país, mas sem a visão nacionalista e desenvolvimentista do regime em questão.
A maioria dos amigos externos do povo brasileiro, entre os quais me incluo, perguntam-se muitas vezes como foi possível aos cidadãos brasileiros, conhecidos pela sua enorme criatividade, eleger Bolsonaro para presidente da República? Haverá muitas respostas, mas a principal talvez seja resultado do tipo de formação social e económica implantada no Brasil após a abolição da escravatura: a formação social escravista, para usar uma expressão que me foi confidenciada pelo professor Muniz Sodré.
A primeira vez que, durante a longa história do Brasil como nação independente, o governo local tentou romper claramente com essa tradição foram os dois períodos em que Lula foi presidente da República. O combate à fome, a ascensão social de grupos anteriormente marginalizados, a aposta na educação e na ciência e, por fim, o início da reparação dos enormes males causados pela escravatura, através da valorização da história e do reposicionamento dos negros (maioria demográfica do país), não podem ser honestamente desmentidos por ninguém.
Lula fez isso mantendo e ampliando a democracia e sem por em causa o modelo capitalista de desenvolvimento do Brasil. Aliás, foi nesse período que o capitalismo foi de facto experimentado e vivenciado por camadas da população brasileira que haviam sido, desde sempre, colocadas à margem do sistema. Por outro lado, a burguesia brasileira talvez nunca tenha ganho tanto, pelo menos até à época. De igual modo, o país chegou a ser, então, a sexta maior economia do mundo.
Não estranha, por isso, que, após o golpe que impediu Dilma Roussef de concluir o seu segundo mandato (sim, impedimento sem responsabilidade política só pode ser classificado como "golpe"), Lula aparecesse como o grande favorito às eleições de 2018. A burguesia brasileira, burra e preconceituosa (como insistir em políticas que mantêm fora do mercado milhões e milhões de pessoas, talvez a maioria?), tudo fez para impedi-lo de voltar ao poder. As acusações de corrupção feitas contra a pessoa dele ainda continuarão a ser discutidas por muito tempo, mas, após 18 casos encerrados por falta de justa causa, é difícil não concluir que as mesmas possuíam (possuem) uma inegável motivação política.
A verdade é que, em 2018, a burguesia brasileira trabalhou decisivamente para fazer eleger um declarado anti-democrata, misógino, homofóbico e corrupto, usando, para isso, a bandeira da moralização, o que, para quem não se esquece da história, é uma velha estratégia do fascismo. Pensava que poderia domesticá-lo, mas, como sempre, enganou-se. Três anos depois, parece ter concluído que se "enganou", começando a desembarcar da canoa bolsonarista. Ainda não é claro, contudo, como será o novo amanhã do Brasil.
Voltando à "formação social escravista" do Brasil. Lula aparece outra vez como o grande favorito às eleições de 2022. Mas os senhores da Casa Grande ainda não decidiram se vão "autorizá-lo" ou não a ser novamente eleito. Mesmo que tenham ganho muito dinheiro com ele, voltar a eleger o retirante com bisavó indígena e avô negro e que não frequentou a universidade (embora tenha sido o presidente que mais universidades criou) é demais para eles.
O "dilema" foi expresso pelo académico Admar Bacha, ex-ministro de Fernando Henrique Cardoso: - "Bolsonaro é um risco à democracia e Lula é um risco à economia". Ou seja, continua no ar a hipótese da Casa Grande preferir o "risco para a democracia".
Jornalista e escritor angolano, publicado em Portugal pela Caminho