Bocetas de Pandora cheias de Cavalos de Tróia

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O momento mais divertido em toda a cobertura televisiva dedicada aos Pandora Papers aconteceu na TVI. Não quando Morais Sarmento passou catorze minutos a explicar porque é que a sua utilização de uma offshore para investir num hotel foi um heróico acto de resistência contra a burocracia moçambicana, mas num segmento posterior, em que entrevistaram João Paulo Batalha. Depois de triunfantemente revelados os nomes dos "três portugueses" que constam descarga de documentos, a entrevistadora tentou ir ao fundo do problema: "Estamos a falar de pessoas que foram titulares de cargos públicos, não há aqui uma... questão ética em jogo?

No geral, as televisões nacionais tentaram, pelo menos no primeiro dia, tratar o assunto com a devida reverência, e portanto foram forjando o seu próprio entusiasmo, recorrendo aos recursos hiperbólicos mais fiáveis: a frase "A Maior Investigação Jornalística de Sempre" foi repetida em pelo menos dois canais. Mas foi-se instalando um certo ennui, talvez mais depressa do que é costume, com procissões de convidados repetidamente interrompidos com um "para as pessoas lá em casa perceberem", e segmentos de dois minutos encerrados por "falta de tempo".

A pergunta sobre "haver uma questão ética em jogo" é caracteristicamente cómica não apenas pelo hesitante decoro (seria como perguntar sobre um incêndio se "não há aqui uma questão de combustão em jogo?"), mas também por deslocar a ênfase para o sítio errado. O subtexto promovido por este tipo de enquadramento nunca pode ser a corrupção no seu sentido sistémico (de algo que existe em sistemas que acções ou inacções políticas ajudaram a construir e perpetuar), ou material (de aquisição de vantagens indevidas), ou sequer uma ideia geral de "impunidade". O que se procura é o titilar de nervos mais remotos, instintos mais atávicos, e hábitos de consumo de informação moldados em parte pela ficção: uma narrativa assente em juízos individuais sobre a virtude pessoal dos envolvidos - os protagonistas.

Em muitos aspectos, os Pandora Papers são um artefacto saudosista, daí ser natural o impulso para tratar a cobertura noticiosa como um fenómeno de revivalismo. Para começar, por ser uma repetição, na forma, conteúdo e método de baptismo, de outras revelações recentes (Panama Papers, LuxLeaks, Luanda Leaks, Malta Files, etc.). Mais do que isso, é um lembrete de outro fenómeno historicamente específico, que entretanto deixou de funcionar da mesma maneira, mas cuja pegada cultural ainda tem força suficiente para manter algum apelo emocional: o da "notícia bombástica" que revela uma verdade escandalosa até aí escondida e que (por conseguinte) vai ter consequências imediatas - um pedido de desculpas, uma demissão, uma impugnação, etc. Nesse período, inevitavelmente recordado com nostalgia por quem ainda se dedica à actividade, uma das funções da comunicação social era precisamente fazer esta mediação entre causas e consequências - determinar o itinerário dos "titulares de cargos públicos" desde o momento em que eram "apanhados" até o momento em que sofriam uma sanção. A forma como cada uma destas "revelações" contemporâneas é processada mantém não apenas a crença fervorosa da imprensa nesta ideia exaltada da sua própria importância, mas também numa espécie de sebastianismo do "documento", em que a exposição colectiva a dossiers repletos de Verdade funciona como uma cura.

Num dos bons exemplares da série de filmes dos anos 70 informalmente chamados "thrillers paranóicos", Os Três Dias do Condor, o desenlace é quase uma paródia desta convicção. O filme termina com o protagonista a garantir as mais importantes das consequências materiais - a denúncia da conspiração e a sua própria segurança física - através de um simples expediente: contar tudo o que sabe ao New York Times. Um agente da CIA implicado na conspiração intercepta-o à porta do jornal, e tenta incutir nele (e no espectador) uma dúvida: "quem te garante que eles vão publicar a notícia?". Ou seja, a única diferença imaginável é entre um mundo em que a verdade é conhecida por todos, ou um mundo em que ela permanece encoberta. O corolário é óbvio: o poder depende da capacidade para operar em segredo, e a exposição desse segredo é condição suficiente para o inviabilizar.

A crença persistente nas propriedades magicamente higiénicas da "investigação jornalística" e da "exposição da verdade" é, como muitas outras vagas convicções públicas, o resquício contemporâneo de algumas coisas ocorridas algumas décadas antes, reverencialmente elevadas a verdades abstractas. No caso em questão, é uma categoria de idealismo assente na mitificação póstuma da única vez em que o modelo funcionou exactamente assim (o escândalo Watergate), e que precisa de esquecer a facilidade com que muitos casos posteriores foram absorvidos, integrados na atmosfera, ou instantaneamente esquecidos, excepto como modelos de sufixação para o escândalo seguinte.

Os thrillers "paranóicos", tal como as histórias de espiões e a ficção detectivesca em geral, sofreram óbvias dores de adaptação ao mundo digital, não apenas porque a gramática de gestos investigativos se tornou mais reduzida (e mais chata de filmar e observar), mas também porque o momento de estar no limiar da revelação se tornou muito mais banal. A sensação de estar prestes a saber algo chocante, que a boa ficção desses géneros se especializava em instrumentalizar, é indistinguível da sensação de passar algumas horas por dia na internet. Não é que o momento exacto em que se unem as pontas soltas tenha deixado de existir, é que agora parece acontecer constantemente.

Por uma série de razões, umas orgânicas, outras ideológicas, e algumas acidentais, o tipo de enquadramento que a informação televisiva costuma dar a estas colossais descargas de informação acaba por ser semelhante tanto ao enquadramento retórico que o discurso populista gosta de dar ao tema génerico da "corrupção", como ao funcionamento das discussões conspirativas online: a sensação titilante de descoberta, arrastada ao longo de vários "episódios" em espaços monetizáveis, em que a "informação" é reduzida a oráculos berrantes sobre quem foi, vai ser, ou ainda não foi "apanhado". A "notícia explosiva" torna-se num gesto quase intransitivo - uma revelação auto-contida que nada inicia, nada conclui e nada modifica a não ser a sua importantíssima auto-suficiência.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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