Biden e Putin: um diálogo indispensável

Quando líderes como Joe Biden e Vladimir Putin passam duas horas numa discussão frontal, nós, simples cidadãos, podemos olhar para isso de modo positivo, mesmo quando os resultados se afigurem incertos. Sempre defendi que as grandes crises devem ser diretamente discutidas entre quem de facto detém o poder. Deixar essas crises serem tratadas ao nível dos ministros dos Negócios Estrangeiros, por muito experientes que sejam, não chega. Tantas vezes, serve apenas para agravar os mal-entendidos e fazer finca-pé nas posições extremas. É frequente ver ministros mais papistas do que o papa. Mesmo quando anteveem soluções, não ousam mencioná-las, com medo da reação do chefe. Cabe ao líder enviar sinais de apaziguamento, indicar o caminho e marcar as balizas, as agora chamadas "linhas vermelhas".

Foi isso que Biden e Putin procuraram fazer. E é nesse registo que devem continuar, de preferência em encontros pessoais. A diplomacia faz-se com apertos de mão. Mesmo em alturas de pandemia. Os líderes sabem que assim é. Por isso, Emmanuel Macron esteve há dias nos Emirados e na Arábia Saudita, com muito êxito, no que respeita às indústrias de guerra francesas - e muitas críticas dos ativistas dos direitos humanos. E o Papa Francisco, que não para apesar da fragilidade física aparente, foi a Chipre e à Grécia. O próprio Vladimir Putin fez, na segunda-feira, uma deslocação relâmpago à Índia, para passar umas horas a reforçar as relações com Narendra Modi, a incentivar o comércio e, sobretudo, a aprofundar a cooperação político-militar.

Um olhar positivo não nos impede de ver a gravidade da situação atual. O destacamento massivo de tropas e de meios logísticos excecionais para regiões russas próximas da fronteira leste da Ucrânia faz pensar, quer se queira quer não, na preparação de uma ofensiva militar. É essa a interpretação que prevalece nas principais capitais europeias e em Washington. Alguns académicos e outros com janela aberta para a rua da comunicação social dizem que se trata de uma maneira de Moscovo fazer pressão, para obter certas garantias políticas vindas do lado oposto. Poderá ser. Mas a verdade é que essa leitura não é aceite pelos dirigentes ocidentais, que veem nas movimentações militares russas todos os sinais de uma ação bélica a curto prazo contra a Ucrânia. O pretexto para tal ação seria o de fazer frente a uma hipotética campanha de Kiev contra os separatistas pró-russos que controlam as regiões ucranianas de Donetsk e Lugansk. O Kremlin jura não ter a intenção de intervir militarmente, mas essa mensagem não passa, por causa do extraordinário grau de mobilização existente ao nível do terreno. É preciso algo mais, do lado de Putin, do que declarações solenes sobre o direito à defesa, uma nota que não faz sentido pois ninguém tenciona invadir essa ou qualquer outra parte da Federação Russa.

Na verdade, os russos e os ocidentais precisam de sair da armadilha em que se deixaram cair, sobretudo desde 2013, como se devesse haver uma hostilidade permanente entre ambos. Infelizmente, parece que apenas as demonstrações de força fazem abrir os olhos. Assim, do lado ocidental, existe agora uma ameaça que foi claramente explicada a Putin. Mas não é uma ameaça militar. Seria um pacote de medidas que teriam um impacto enorme sobre a economia russa, que já não anda de boa saúde. A Rússia ficaria desligada de uma boa parte dos sistemas financeiros e de pagamentos internacionais, que são na realidade controlados pelos americanos, teria imensas dificuldades em cambiar os seus rublos em euros e dólares, sem contar com outras restrições em termos de investimentos, de comércio e viagens para o espaço europeu. Neste domínio, Biden foi bastante arguto.

Antes e depois da conversa com Putin, envolveu na concertação a Alemanha, a França, a Itália e o Reino Unido. Temos uma coesão a cinco. Por prudência, creio, não inclui a Polónia nem qualquer outro Estado do Leste europeu. É, claramente, um acordo que nos diz que estamos numa encruzilhada perigosa e que a continuação da conversa entre os líderes é a via indispensável.


Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

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