Quando o ano estava a terminar a Maria José partiu. Para todos era a Adília Lopes, referência fundamental da poesia contemporânea. O tempo foi-nos aproximando e não esqueço o que Ilda David me disse há dias sobre não ter havido tempo para uma dedicatória no último volume da Dobra (Assírio e Alvim, 2024), que eu receberia, como sempre, com muita alegria. Mas por certo ela já a fez, entretanto… Era uma grande amiga, com uma presença inconfundível de afeto e atenção. Minha prima, encontrámo-nos naturalmente no culto da memória dos nossos ancestrais, a Rua José Estêvão era a referência. E regresso sempre à sua literatura com um misto de júbilo e de saudade.O cardeal José Tolentino Mendonça, na sentida homilia que proferiu na Capela do Rato quando fomos despedir-nos dela, recordou três coisas, que disse guardar no seu coração - a capacidade de contemplar, com uma extraordinária inteligência do coração; a procura de transformar a solidão em comunhão com os outros, em sentido comunitário; e a fé, que a levava a dizer: “Há milagres, não há truques.”A sua obra multifacetada é de uma extraordinária originalidade e irrepetível. Aí se notam os ecos de Sophia de Mello Breyner, de Ruy Belo, e de Nuno Bragança. Escolheu como divisa o pouco de S. Francisco de Assis, como explicou a propósito em A Mulher-a-dias, que do pouco quis o pouco, num elogio da frugalidade e da sobriedade com que o “poverello” sempre viveu.Como recordou o Presidente da República na Mensagem de Fim de Ano, ela foi um modelo de cuidado e de atenção, porque “nunca, nunca perdeu nada, nem deitou nada fora ao longo da sua vida” - e assim foi exemplo para que guardemos seguramente a nossa memória coletiva de séculos.Iconoclasta, desconcertante, inesperada, doce e amarga, o seu lugar é insubstituível. A sua escrita inconfundível ficará na lembrança futura.A verdade é que, ao longo da sua obra poética sentimos uma permanente exigência, da busca da palavra certa, em que a imaginação e a lucidez se ligam intimamente num objetivo determinado em que o nonsense surge de um modo ponderado como ilustração e compreensão da realidade.Ver o mundo às avessas era assim procurar melhor vê-lo, como num casaco de malha, quando parecia faltar-lhe uma casa para o botão, sendo o motivo estar mal abotoado… E lembramos do gosto que partilhava com José Blanc de Portugal, seu padrinho, ao ler os Disparates do Mundo, de Chesterton, que este maravilhosamente traduziu.Por isso, Adília tinha preocupação de ver o mundo sob o ponto de vista atípico e aparentemente cómico ou até chocante, para que se compreendesse melhor a singularidade do que deve ser dito. E lembramo-nos de Paula Rego, ilustradora da Obra de Adília. “Os seus textos fizeram-me logo lembrar a minha juventude, com as criadas, as bonecas, as mães ultraprotetoras. Ela é de um grande romantismo e ao mesmo tempo de um grotesco e de um cómico transbordantes.” Não é, assim, demais pôr lado a lado Paula Rego e Adília Lopes.E o que é ser sempre criança como ela foi? É fazer da memória uma atenção permanente. “Memória-puzzle.” É não esquecer. É pôr os brinquedos na mesa redonda para falarem. E é compreender a magia do escorrega - uma bela comparação para pensar e escrever. Sempre um fundo de ironia, para compreender o essencial: “Os computadores são estúpidos. Só fazem aquilo para que foram programados. As árvores os gatos as casas velhas são inteligentes.” Administrador-executivo da Fundação Calouste Gulbenkian