Batman Alexanderplatz

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Como todas as fábulas da Grande Era Online, esta começou com uma tragédia, uma hashtag, e uma incapacidade geral para determinar se algo é a sério ou a brincar. No tempo dos Antigos, Zacharias Snyder I estava a realizar um filme chamado Justice League, um épico com orçamento de 300 milhões de sestércios. Uma tragédia familiar (a morte de uma filha) levou-o a abandonar o projecto, que foi concluído por Joss Whedon, especialista em transplantar piadas de sitcom para contextos alternativos. A versão de Whedon teve um acolhimento ambíguo na estreia, mas o consenso geral foi de que se deturpara uma continuidade com os antepassados Man of Steel e Batman v. Superman: a visão original fora comprometida e perdeu-se a trilogia que poderia ter sido. Entre o povo, todavia, circulavam lendas e rumores: sobre os fragmentos sonhados por Snyder, sobre um filme secreto, proibido, escondido algures nas masmorras da Warner Brothers: Justice League, o Desejado; Justice League, o Encoberto. Quando os astros estivessem alinhados, dizia-se, a edição especial regressaria ao reino dos vivos para mostrar mais super-heróis em cuecas a esmurrarem-se em câmara lenta. Uma campanha na internet agregou-se à volta da exigência #ReleaseTheSnyderCut. Manifestações foram convocadas, executivos foram ameaçados. Os pedidos eram sérios? Facetos? Assim-assim? O Laço de Héstia compele-nos a responder que ninguém sabe ao certo, tal como não se sabia se o filme existia ou poderia alguma vez existir. Mas quatro anos e quatro horas depois, a versão mítica estreou finalmente na HBO, onde pode ser vista em periféricos de bolso e no formato 4:3, tal como os deuses decretaram.

Há várias surpresas na nova versão, surpresas que têm o condão de surpreender até quem não tenha visto a versão original, mas a maior das quais, o facto para o qual nada nos poderia preparar, é prosaicamente temático: Zack Snyder"s Justice League é um filme de 242 minutos sobre relações laborais e reuniões de trabalho. De um lado temos um empresário em pleno processo de recrutamento. Após um prólogo sem diálogo - 10 minutos de silêncio artístico pontuados apenas pelo grito de morte do Super-Homem no filme anterior -, a primeira frase que ouvimos é a de alguém a ler o que está escrito num cartão de visita: "BRUCE VUÉINE??" Bruce Wayne, pois é efectivamente ele, explica de seguida que se encontra ali numa função de headhunter, e tira um maço de notas do bolso para abrir o apetite aos interessados e mostrar que o assunto é sério. O recrutando é Aquaman, um balde de creatina em forma humana cujos superpoderes são as tatuagens e a capacidade para comunicar directamente com robalos. Farto da entrevista de emprego, despe a camisola e atira-se à água. Um rancho folclórico escandinavo fica a cantar à beira do lago enquanto a sua silhueta desaparece. O pullover que despiu é melancolicamente cheirado por transeuntes. Quando a reunião (a primeira de muitas) chega ao fim, Wayne viaja de helicóptero para apanhar um avião, e lá vai recrutar mais um candidato.

Do lado da concorrência, os vilões debatem-se com o dilema que assola reinos, impérios e empresas destes tempos imemoriais: a dificuldade em encontrar boas chefias intermédias. Superficialmente, o motor do enredo é a procura de três motherboxes - caixotes mágicos onde sábios ancestrais arrumaram os elementos sagrados do Guião Que Fazia Sentido para que nunca fossem vistos por olhos humanos. Quem se encarrega da tarefa é Steppenwolf, um bloco de plasticina enfeitado com lantejoulas que passa aproximadamente dois terços do seu tempo em cena a tentar marcar reuniões com o patrão, apenas para ver o pedido rejeitado pelo superior hierárquico. "Steppenwolf, já começaste a conquista?" pergunta-lhe o superior hierárquico. A "conquista" é um plano para agregar os três caixotes e executar espantosas proezas de agronomia, como cavar sulcos em terra arável e fazer trepadeiras roxas crescer muito depressa. Com a ajuda de um exército de "parademónios" (traças gigantes com olhos vermelhos e máscaras de gás), Steppenwolf tenta reiteradamente mostrar a sua capacidade para trabalhar em equipa, assumir responsabilidade individual, e executar projectos complexos dentro dos prazos preestabelecidos.

A Liga da Justiça decide instrumentalizar o poder dos caixotes mágicos para reverter a "morte" do Super-Homem (nestes universos, não há uma única "morte" que não leve aspas). O projecto é bem sucedido e o filho de Krypton ressuscita, surgindo de repente no meio de Metropolis descalço, de tronco nu, e com calças de fato de treino. Transtornado, a sua reacção instintiva é começar a atirar pessoas contra edifícios, até Lois Lane chegar e lhe começar a explicar os problemas da mãe com o seu crédito à habitação, o que por algum motivo consegue acalmá-lo.

Mais ou menos a meio da aventura, torna-se claro que o filme dura quatro horas, mas poderia facilmente durar seis horas, ou nove horas, ou vinte minutos, ou uma semana. Esteticamente, o objecto é a forma platónica de um teledisco dos Evanescence em 2004, suplementado com alguns anúncios a perfumes, e planos de searas de milho criados pelo reputado artista contemporâneo MacBook Pro. Narrativamente, nada faz sentido, o que nem sequer é um problema grave, porque a forma e as respectivas convenções têm elasticidade suficiente para admitir arbitrariedade, tédio e esquisitices avulsas, sejam elas produto de inspiração ou inércia. É melhor ou pior que a versão de 2017? A resposta correcta é acender um cigarro e ignorar tolerantemente quem fez a pergunta. Uma das consequências do filme, ainda assim, é reforçar a principal diferença entre as modernas adaptações dos universos Marvel e DC: as primeiras parecem feitas por adultos a brincar às crianças, e as segundas por crianças a brincar aos adultos.

E honra lhe seja feita, não há uma criança no planeta mais habilitada (ou com a sensibilidade mais apropriada) para brincar aos adultos do que Zack Snyder. Mais ninguém tem os seus super-poderes: de fixação, de solenidade, de literalidade. A dada altura, alguém explica a uma das personagens que ela tem o "destino no mundo nas mãos", e a personagem responde ficando imenso tempo a olhar para as mãos. Mesmo quando são "piores" a quase todos os níveis, histórias imaginadas por uma pessoa muito esquisita terão sempre mais motivos de interesse do que histórias imaginadas por uma comissão executiva muito competente - menos diálogos de sitcom, e mais hiper-vilões a olharem os céus enquanto rosnam "Quero banhar-me na glória da Anti-Vida", ou "Chegou a altura de pegares no tridente da tua mãe!"

Após 20 anos de hegemonia, o melhor momento produzido pela monocultura dos super-heróis surgiu num dos seus filmes mais penosos, o Batman v. Superman de Snyder. É a cena em que se tenta reproduzir (com a inocência de uma criança precoce) as mesmas desconstruções realistas sobre poder e responsabilidade em que os filmes da Marvel se tentaram especializar: criaturas semi-divinas arrastadas perante políticos sisudos numa comissão de inquérito. Em cinco segundos, a câmara mostra a cara de uma senadora (Holly Hunter, coitada) no momento em que percebe que esteve a beber a urina de um vilão multimilionário; e uma explosão colossal que mata toda a gente menos o Super-Homem. "Aqui está o mijo que têm andado a beber", diz-nos a cena. "Mas não pensem mais nisso: vejam outra explosão em câmara lenta."

Isso sim, foi Arte.

(...)

Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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